Rupnik, teólogo e artista sacro, é o autor do símbolo do Jubileu da Misericórdia. Foto: Vid Ponikvar/Siol
Rupnik, teólogo e artista sacro, é o autor do símbolo do Jubileu da Misericórdia. Foto: Vid Ponikvar/Siol| Foto:

Os santuários de Fátima e Lourdes, do Padre Pio em San Giovanni Rotondo e de João Paulo II em Cracóvia, a capela Redemptoris Mater no Vaticano: se você visitar qualquer um desses lugares, vai se deparar com os mosaicos do padre Marko Ivan Rupnik e de sua equipe do Centro Aletti, de Roma. O jesuíta esloveno, além de artista, é um teólogo que penetra como poucos no ensinamento dos Padres da Igreja, dos autores monásticos e de Santo Inácio de Loyola.

Na semana passada, tive a oportunidade de conversar com ele, durante o 11º Encontro Nacional de Arquitetura e Arte Sacra, realizado em Curitiba pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). O pano de fundo da nossa conversa foi o seu livro O discernimento, publicado pela Editora Paulinas. O tema do discernimento é tratado ali em sentido amplo, isto é, no sentido original que tem na vida cristã, e não apenas se limitando ao discernimento vocacional.

Um dos trechos mais interessantes é aquele em que o padre Rupnik descreve as tentações que assolam as pessoas que já deram os primeiros passos da vida com Cristo. Nessa fase, o inimigo da natureza humana sabe muito bem que tentações “grosseiras” não funcionam: mais do que afastar-nos da prática religiosa, o que ele quer é esvaziar essa mesma prática, de tal forma que estejamos completamente inseridos em um mundo religioso, mas na verdade não tenhamos fé.

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Falamos em santidade, praticamos ascese, fazemos orações e obras, mas ainda estamos vivendo de forma individual, isolada, fora da relação com Deus e com o próximo, preocupados apenas com a nossa própria perfeição. Ainda somos “homens velhos”, não redimidos, vivendo a fé cristã a partir da mentalidade do pecado. Acabamos nos sentindo “justos”, “dignos”, até “perfeitos”, porque cumprimos certas obras e defendemos certas ideias – mas acabamos, com isso, vivendo de maneira totalmente antievangélica. Somos os protagonistas de nossa vida espiritual, satisfeitos em estar fazendo as coisas certas – Cristo se torna um mero detalhe, uma ideia, um coadjuvante.

Nesse ponto, nosso comportamento “de espiritual não tem mais nada”, diz Rupnik, porque a fonte do nosso agir é a idolatria de nós mesmos, nos comprazendo em “defender a verdade” – julgando, julgando e julgando – enquanto traímos o amor – e ainda nos justificamos, reduzindo o amor, justamente, à defesa da verdade. Feita essa introdução ao tema, vamos à entrevista:

Não sei como vão as coisas na Europa, mas aqui no Brasil boa parte dos jovens que expressam a sua fé católica nas redes sociais recebeu uma formação que corresponde a essas tentações que o senhor descreve.

Eu estava pensando justamente nisso.

Trata-se de passos necessários em um processo de amadurecimento ou é algo realmente preocupante?

Se alguém leva a fé muito a sério, uma passagem mais forte, de tom ideológico e moralista –“Eu vejo as coisas assim, é assim que elas são, está tudo claro, é assim que se faz, não é daquele jeito, vamos fazer, fazer, fazer”, como “justiceiros” de Deus – é provavelmente só uma passagem. Por exemplo, se olhamos para os santos: Gregório Nazianzeno alimentava grandes propósitos para mudar a situação do seu tempo, e no fim percebeu que ele deve oferecer algo ao Senhor, e não fazer. Basílio Magno tinha uma visão enorme de como mudar as coisas, porque era um grande intelectual, mas no fim percebe que não se trata de fazer, mas de viver. Inácio de Loyola teve essa fase extremamente zelosa, em que cogitou matar um mouro que havia falado mal de Nossa Senhora. Provavelmente, isso faz parte um pouco do caminho.

Mosaico de Rupnik no Santuário de Lourdes, na França. Foto: Centro Aletti.

Porém, fica muito perigoso quando paramos aí. A armadilha dessa tentação é pensar que eu já cheguei, que já estou na posição certa. E aí está o ponto da sua pergunta: o discernimento protege o caminho espiritual na fé, de modo que não se degrade em religião. O problema do cristianismo na época moderna é que nós aceitamos pacificamente que o cristianismo é uma religião. Não é verdade. O cristianismo não é uma religião, mas um novo modo de existir, a manifestação de uma nova humanidade. Não é um caminho religioso, aos moldes de qualquer religião: “tem que fazer isso”, “tem que fazer aquilo”. Por isso, a solução está no discernimento, no qual eu verifico permanentemente a minha própria atitude, a fim de que não se torne ideológica, para que eu não escorregue para a religião e permaneça na acolhida da Vida.

Por exemplo: no capítulo 10 de Marcos, o jovem rico pergunta: “O que eu devo fazer para herdar a vida eterna?” A pergunta é muito malfeita. Ela parte disso que falamos: “O que eu devo fazer?” Mas, olha, herda-se porque se é filho; não porque se fez algo. Você pode fazer todas as obras do mundo, mas não vai herdar o Reino, porque quem herda o Reino é o filho. Então, não se trata do fazer, mas da relação filial. Quem é filho terá a vida do Reino. E Cristo de fato, respondendo ao jovem, cita apenas mandamentos da segunda tábua, isto é, aqueles relacionados ao próximo. E ele pensa: “Isso eu já faço sempre. Mas sou infeliz. Me falta algo”. Ele pensava que deveria também regular a sua relação com Deus. Mas quem fez isso foi o Filho. Não somos nós que o fazemos. É muito belo isso. “O que devo fazer?” Não… Desde pequenos somos formados assim: “Você tem que rezar para isso, fazer para isso”, sempre “para”. Não. Precisamos ser filhos. E o Espírito Santo nos faz filhos no Filho.

Se alguém é coordenador de um grupo de jovens do qual fazem parte muitos jovens que ainda estão presos nessa mentalidade, por onde ele pode começar a trabalhar isso, a apontar um outro caminho?

Sabe, acho que enquanto não descubro a minha própria falência, a própria queda, o próprio pecado – isto é, enquanto não percebo que estou fazendo as coisas, estou me empenhando, mas sou infeliz, estou fundamentalmente só – é difícil começar. Porque é necessário um sabor diferente. Se eu como carne enlatada, isso me sacia, minha barriga fica cheia. Mas enquanto eu não saboreio uma bela bisteca ou um assado argentino, não compreendo que carne enlatada é uma porcaria. Então, quando você descobre que está comendo porcaria, começa um caminho espiritual em que você abre os olhos para a fé e entende que a fé é acolhida e não conquista. Na oração ou fazendo exercícios espirituais, percebo que acho que sei rezar, mas é uma obra minha; não acolho nada, porque o centro sou eu. Ou seja, enquanto alguém não começa a se dar conta de que tudo – o bem e o mal – está baseado sobre o próprio “eu”, não há muito o que fazer.

Mosaico na Igreja de Maria, Mãe da Igreja, em Zaragoza, Espanha. Mosaico na Igreja de Maria, Mãe da Igreja, em Zaragoza, Espanha. Foto: Centro Aletti.

O pecado reduziu o homem ao “eu” individual. O capítulo 16 de Ezequiel mostra muito bem que o indivíduo credita todas as graças e dons a si mesmo. Penso que quando o jovem começa a descobrir que vive falsamente, que não consegue abraçar toda a sua vida com essa fé tão “clara” – vê que há divisões, pornografia, um pouco disso, um pouco daquilo –, então esse “eu” começa a ruir. Aí ele percebe que está vivendo uma fachada, uma aparência, mas que debaixo disso ele é igualzinho a todos os outros jovens do mundo – ou que não faz nada disso, mas é seco, severo, não é misericordioso nem se abre aos outros, ou seja, não tem a vida de Deus. De que serve? Sou religioso, mas não tenho a vida de Deus; não sou filho. Até que se chegue a esse ponto, não acredito que dê para fazer alguma coisa.

Nós nos tornamos uma religião do indivíduo. Há quem diga que se deve superar o “eu” com o “nós” – mas isso é máfia, fascismo, comunismo, fundamentalismo islâmico. Não, não. Para nós cristãos é diferente. O pecado nos reduziu a um “eu” individual, mas a redenção com o Espírito Santo em Cristo fez de nós um “eu” comunional. Já não vivo eu, mas Cristo em mim, ou seja, em mim vive agora um “eu” filial, que conhece o Pai, que não é mais individual, mas relacional.

Como evitar que a percepção dessas tentações e a descoberta de um novo caminho se tornem, por sua vez, um novo juízo dos outros?

Não é possível. Simplesmente não é possível. Isso porque eu mudo de verdade quando acolho uma vida diferente, quando essa vida do indivíduo morre. Quando o indivíduo recebe a vida de Deus, o indivíduo morre, porque não pode suportar a vida de Cristo. Cristo não é um indivíduo, é uma pessoa – e pessoa é um ser constituído pela relação. Então, quando, no batismo, morre o indivíduo, ressuscita uma pessoa. É uma vida diferente, e aí é a Vida que me impede de julgar o outro. Se eu julgo, é o coração que me diz: “Marko, você está errando. Essa não é a Vida que nós dois devemos viver”. É a Vida que te faz lembrar. Isso é que é bonito. Se eu recebi a Vida, se estou com Cristo, não posso não incluir também você. E se te julgo, significa que eu penso que tenho a Vida, mas não a tenho. Ainda sou apenas eu mesmo: esperto, mas fora da Vida.

Detalhe do mosaico da Catedral da Mãe de Deus, em Castanhal, no Pará. Detalhe do mosaico da Catedral da Mãe de Deus, em Castanhal, no Pará. Foto: Centro Aletti.

Veja, a verdadeira arte espiritual é a memória. Então, se eu digo: “Felipe, lembre-se de mim”. Volto à Europa e você fica aqui. O que quer dizer para Felipe lembrar-se de Rupnik? Que a cada mês, você dedica uns minutos a pensar em Rupnik. É isso que geralmente entendemos por “lembrança”, não é? Mas isso é uma memória miserável. É entender mal o que é a memória. Não é pensar, é a Vida. Uma vez jantei com uma família bem jovem. Estávamos conversando e de repente a mulher sai da mesa e sobe correndo as escadas. Pensei: “O que aconteceu? Será que é o bebê?” Nem o marido nem eu ouvimos nada. Mas ela tinha sentido. O que aconteceu não foi que ela se recordou intelectualmente do bebê. Foram as suas entranhas, foi a Vida, a relação. Quando alguém ama uma pessoa, a mãe não precisa dizer: “Ivan, vê se lembra um pouco de Natasha hoje”. Já que Ivan está apaixonadíssimo, a mãe diz: “Ei, tenta pensar um pouco na matemática e vê se esquece um pouco da Natasha”. Por quê? Porque o amor é a memória.

Então, quando recebo realmente a Vida, e a recebo como dom e não como minha conquista, como eu oro? “Senhor, que o seu dom emerja do meu interior; que a minha humanidade se torne transparente, para que esse dom passe”. E se não passar, será a própria Vida que me dirá: “Olha, Marko, ali não nos manifestamos. Ali você bloqueou a Vida”. E se sofro porque isso aconteceu, esse sofrimento é muito saudável, porque quando sofro por aquilo que não consigo fazer, invoco o Espírito. O erro se tornou para mim motivo de união com Deus. Quando dava geada lá em casa, papai passava pelo campo e rezava em voz alta: “Senhor, não vês que não temos nada? Já somos pobres, e destróis o pouco que temos. Que queres de nós?” O vizinho blasfemava com todos os palavrões. Essa é a vida espiritual: o mal se torna o bem, isto é, papai com o mal se uniu a Deus, aproximou-se mais dele. E se vejo o mal que os outros fazem, sofro, como o Senhor, e isso me une a Deus: não a minha bravura, mas a misericórdia. Tudo muda.

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“O discernimento” é publicado no Brasil pelas Paulinas.

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