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“Sem amigos, ninguém optaria por viver, ainda que possuísse todos os outros bens”. Há pelo menos 24 séculos o filósofo grego Aristóteles escreveu essas linhas. E a frase, como uma boa amizade, envelheceu bem: muitos de nós experimentam o mesmo diante da companhia de um amigo ou amiga. Não é incomum, porém, que em dada altura da vida a família e o trabalho nos suguem de tal forma que fica uma lacuna no campo da experiência da amizade. Afinal, o que perdemos quando perdemos os amigos, ainda que tenhamos uma carreira bem-sucedida e uma família feliz?

Diversos estudos na área da psicologia já constataram a importância que a amizade tem na infância e na adolescência como um laboratório de desenvolvimento de habilidades sociais necessárias para enfrentar a vida adulta. Mas os benefícios não se restringem àquela faixa etária, como evidenciam outras pesquisas.

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“Hoje, vários estudos comprovam o que já se sabe há milhares de anos: ter bons amigos é mais importante para a nossa saúde psicológica do que nossa condição socioeconômica”, explica o psicólogo Gabriel Resgala. “Com amigos, fica mais fácil superar as dificuldades da vida, saber que não se está sozinho, ter com quem contar nos momentos difíceis, desenvolver o senso de humor e possuir mais opções de lazer. São coisas que o dinheiro não compra”.

No começo da vida adulta, quando novos contextos demandam do indivíduo uma série de ajustamentos emocionais, os amigos oferecem um apoio social em meio ao turbilhão de novas experiências. A amizade pode ficar um pouco ofuscada no meio das exigências do trabalho e da família, mas na velhice, após a aposentadoria, desempenha novamente com mais força um papel primordial na felicidade das pessoas nessa faixa etária.

E a família?

Tanto no mundo grego quanto entre as primeiras gerações cristãs, a família não representava o tipo de relação a ser priorizado, como enxergamos atualmente. “No início do cristianismo, o envolvimento com o projeto de Jesus era algo mais absoluto do que a experiência familiar como entendemos hoje. Esta mudança de foco vem sendo realizada principalmente nos dois últimos séculos por uma série de fatores socioculturais que vai além do próprio cristianismo”, avalia o teólogo e padre dominicano André Luiz Boccato de Almeida, professor do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

“A tradição dos padres do deserto via na amizade um caminho espiritual de perfeição humano-cristã. Em João Cassiano, por exemplo, a amizade é vista como uma plena e perfeita graça que pode conduzir os homens à perfeição”, afirma Boccato. Na própria história do cristianismo, ficaram famosas amizades como as de Francisco e Clara de Assis ou de Inácio de Loyola, Pedro Fabro e Francisco Xavier. Sobretudo entre os séculos IX e XIV, chegou a ser praticado no cristianismo, sobretudo naquele de tradição bizantina, um rito chamado de adelphopoiesis – literalmente, “fazer irmãos”. Os textos dessa liturgia mencionavam os dois participantes como “irmãos espirituais”. A partir dali, eles eram vistos pela comunidade como se fossem irmãos.

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Analisando esse rito em um texto do começo do século XX, o filósofo e teólogo russo Pavel Florenskij, inspirado no trecho do Evangelho em que Jesus diz que “onde dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles” (Mateus 18:20), afirmou que a amizade cristã seria “uma molécula comunitária, um par de amigos, que é o princípio das ações aqui, assim como a família era esse tipo de molécula para a comunidade pagã”.

No entanto, também entre os gregos a amizade era tida em alta conta. “A amizade é um dos temas centrais da filosofia desde quando o primeiro livro de ética foi escrito – a Ética a Nicômaco, de Aristóteles”, sublinha o professor Jelson Roberto de Oliveira, do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). “O mundo grego valorizava muito a amizade em detrimento da ideia de família. Os gregos consideravam a amizade um amor fundamental, superior”.

Experiências complementares

É nesse sentido que as próprias relações familiares podem sair ganhando quando as aprofundamos dentro de uma experiência de amizade entre os seus membros. “Nós geralmente pensamos que ‘amizade’ é o nome de uma relação, quando na verdade é o nome de um sentimento, como o amor. A amizade é um sentimento que deve de alguma forma azeitar todas as demais relações, inclusive a relação do casamento e a relação familiar”, explica Oliveira. “É um sentimento que pode se dar entre o pai e o filho, entre os irmãos, entre o casal. Onde houver amizade, há um sentimento mais profundo de encontro de dois seres que se realizam precisamente nesse sentimento”.

Boccato concorda: “Digamos que a família tem o preciso dever de contribuir para a humanização da sociedade e a promoção do ser humano. Assim, na família se pode viver verdadeiras experiências de amizade que são o fundamento para a boa convivência de amizade social”. Ao mesmo tempo, relações que se dão fora do âmbito familiar ou que não se restringem ao coleguismo próprio do ambiente de trabalho enriquecem a experiência humana.

“As amizades ajudam a desenvolver, através do afeto, um maior respeito pelo que é diverso. E, consequentemente, podem colaborar para o amadurecimento de novas formas de vivência, ampliando o nosso repertório cognitivo e emocional”

“A família tem, sem dúvida, um peso bem maior que as outras influências, sobretudo na infância – mas, ao longo da vida, as amizades vão ganhando papel importante”, esclarece Resgala. “Tendo amigos, passamos a nos importar com pessoas que tiveram outras origens familiares e que apresentam pensamentos e comportamentos muitas vezes distintos dos nossos, e aprendemos que essa diversidade não impede a intimidade”.

“As amizades ajudam a desenvolver, através do afeto, um maior respeito pelo que é diverso. E, consequentemente, podem colaborar para o amadurecimento de novas formas de vivência, ampliando o nosso repertório cognitivo e emocional”, diz o psicólogo. “Por mais bem estruturada que seja a família, ela nunca será perfeita – e os amigos podem ajudar a preencher um pouco essas pequenas lacunas. Nunca vão substituir a família, mas podem somar bastante à bagagem que já trazemos de casa”.

Bons amigos

Um estudo de 2011 da Universidade de Cornell constatou que cada norte-americano tem em média dois amigos – embora 25% da população esteja em um nível de isolamento social, isto é, não contam com ninguém com quem conversar sobre questões importantes da vida. Esses dois amigos, embora pareçam poucos, fazem a diferença.

“Nietzsche achava que o amigo era aquele que ao nos questionar e nos colocar contra a parede, nos pedia razões do modo como nós somos. Esse amigo, para Nietzsche, precisa ser uma espécie de inimigo, de adversário”, conta Oliveira. “A ideia é a de uma academia espiritual em que a relação de amizade consolida a constituição do eu, porque o amigo, ao questionar o eu, o ajuda a ter mais força para enfrentar as demais relações sociais – sempre um pouco poluidoras e enfraquecedoras do eu. Nietzsche achava que as relações que temos nas instituições ou com a multidão enfraquecem a experiência do eu, enquanto a amizade a fortalece”.

6 sinais que denunciam uma amizade tóxica

O critério é justamente essa experiência de fortalecimento. “Assim como em qualquer tipo de relacionamento, uma amizade pode se tornar ‘tóxica’ quando passa, de alguma forma, a nos desestimular, baixar a nossa energia, em vez de nos impulsionar”, avalia Resgala. “Uma coisa é o amigo que nos ajuda a ter o pé no chão, encarar a realidade. Outra é aquele que não nos faz nos sentir tão bem quando estamos com ele. Todos têm seu lado um pouquinho chato, suas manias, suas exigências. Mas ninguém é obrigado a manter uma amizade que suga nossas energias emocionais e nunca contribui quando precisamos”.

Para Oliveira, uma das pistas para melhorar a qualidade de uma amizade é justamente refletir sobre a importância que um amigo tem em nossa vida. “Somos amigos melhores quando pensamos melhor sobre o que é a amizade e sobre o valor que ela tem em nossa vida. A correria do dia a dia nos tira tempo da amizade, mas essa relação exige dedicação”, afirma o filósofo. “Tempo, dedicação e o reconhecimento da importância desse amigo na constituição daquilo que nós somos são elementos importantes para sermos melhores amigos”.

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