De causa multifatorial, o transtorno de personalidade boderline pode ter propensão genética e interagir com questões ambientais.
De causa multifatorial, o transtorno de personalidade boderline pode ter propensão genética e interagir com questões ambientais.| Foto: Joyce Huis/Unsplash

Um “vazio interior”, medo de abandono, dificuldades no controle da emoção, na capacidade de desenvolver e manter relacionamentos, como também na habilidade de regular o comportamento impulsivo. Essas são algumas das características que podem sinalizar um transtorno de personalidade borderline (TPB), de acordo com o psiquiatra Glauber Higa Kaio,  que é mestre em transtornos alimentares pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e vice-presidente da Associação Paranaense de Psiquiatria - Capital.

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Além disso, o TPB, também conhecido como transtorno de personalidade limítrofe, apresenta outras duas características que merecem atenção: o excesso de cuidado com o outro e excesso de autocrítica, conforme explica Thomas Haunold, especialista no tratamento do transtorno de personalidade borderline e psiquiatra Supervisor do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FM-USP.

Ele sinaliza, porém, que essas duas características só configuram um transtorno quando há prejuízo funcional na vida do indivíduo. “Acaba acontecendo que, de tanto cuidar do outro e ignorar a si próprio, deixando as suas necessidades em segundo plano, as pessoas vão se enchendo até explodir, demonstrando uma suposta falta de cuidado com o outro, quando na realidade a essência do transtorno é o excesso dele", diz Haunold.

Genética

Higa Kaio explica que o transtorno de personalidade borderline apresenta causa multifatorial, podendo derivar de uma predisposição genética que é maior que a herdabilidade comparada à da depressão. E que, segundo ele, essa propensão interage com fatores ambientais – como maus-tratos na infância por negligência, abuso emocional ou sexual –, ou derivar de uma causa biológica – com uma disfunção do sistema serotonérgico, que é responsável por manter o funcionamento adequado do sistema nervoso.

Essa relação da causa do transtorno com a configuração genética do indivíduo pode ser vista em estudos realizados com gêmeos que foram separados no nascimento, educados em ambientes diferentes, porém com a mesma probabilidade alta de apresentarem o transtorno de personalidade borderline. “Inclusive, na grande maioria das configurações familiares do paciente com esse transtorno, há alguém que provavelmente vai ter essa mesma disfunção, dificultando a validação emocional do paciente, tão necessária para o tratamento”, comenta Haunold.

Diagnóstico falso

Ainda que o transtorno não seja diretamente desencadeado por outras doenças, podem haver transtornos mentais que acometem o paciente concomitantemente e que muitas vezes necessitam de tratamento prévio ao tratamento do TPB. "Entre eles estão o transtorno depressivo, o transtorno bipolar, o transtorno de uso de substâncias, a anorexia nervosa do subtipo compulsão alimentar/purgativo, a bulimia nervosa, o transtorno de estresse pós-traumático, o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, e outros transtornos de personalidade", afirma Glauber Higa Kaio.

E Thomas Hanould destaca ainda que há três situações específicas que devem ser levadas em consideração, pois tendem a levar um diagnóstico falso de transtorno de personalidade boderline.

  • Transtorno de estresse pós-traumático: muitos pacientes acometidos pelo transtorno de personalidade borderline viveram um evento traumático ou o experimentaram, ainda que não diretamente, de modo que a fragilidade amplifica as características de personalidade da pessoa a ponto de se tornar um transtorno de personalidade borderline, sendo necessário tratamento eficaz através da terapia dialética comportamental (DBT - Dialectical behavior therapy), que será explicada posteriormente.
  • Transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH): ao menos 30% das pessoas com transtorno de personalidade borderline também apresentam o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade, considerando que muitas vezes a dificuldade do indivíduo se organizar e desenvolver alguma habilidade pode causar uma frustração tão grande a ponto de se expor à uma fragilidade imensa, na qual o indivíduo se submete à atitudes de alta lesividade, como automutilação, tentativas de suicídio e demais atitudes típicas, estereotípicas ou preconceituosas do transtorno de personalidade borderline.
  • Uso de substâncias: muitos adolescentes, entre 12 e 14 anos, influenciados por circunstâncias do meio, para se encaixarem em determinado ambiente, iniciam a utilização de substâncias como álcool e até medicamentos que são extremamente nocivos gerando possivelmente uma fragilidade que, amplificadas as características, pode se transformar no TPB.

Tratamento

O tratamento padrão mais eficaz para o TPB é a terapia dialética comportamental, que embora exista desde 1994, passou a ser divulgada apenas recentemente no Brasil. Em seus primeiros estudos os psiquiatras obtiveram 90% de taxa de cura, alcançando atualmente 95% a 99% de chance de cura, dependendo das comorbidades.

Na ausência de tal tratamento, pode ser utilizado o bom manejo clínico ou manejo psiquiátrico, realizado por um psiquiatra com consultas mais espaçadas. A terapia desenvolvida na década de 1990 por John G. Gunderson, em Harvard, também demonstrou alta chance de cura, próxima a 80%, enquanto as demais terapias direcionadas alcançam 50%.

"Importante ressaltar que a eficácia de qualquer uma das terapias depende da boa aliança estabelecida entre o paciente e o profissional (psiquiatra ou psicólogo), através da demonstração de empatia por ele, sendo sensível para captar o sofrimento, que muitas vezes não está sendo verbalizado", diz Higa Kaio.

Infelizmente diversos estudos apontam que na prática clínica a maioria dos pacientes com TPB recebe apenas medicamentos, sem que haja uma boa avaliação com o paciente quanto ao diagnóstico e tratamento. “As medicações psicotrópicas devem ser consideradas como uma intervenção adjuvante, porém muito necessárias quando existe risco de suicídio ou quando outros transtornos mentais concomitantes estão desestabilizados, contribuindo para a piora geral do quadro”, completa ele.

Pandemia

Ambos os especialistas confirmam que a pandemia tem causado o agravamento dos pacientes com transtorno de personalidade borderline, devido a restrição da interação social que tem aumentado o sentimento de rejeição e impossibilitado outros tipos de manejo que os pacientes de borderline utilizam para lidar com a emoção como a atividade física, a meditação e os encontros com amigos, como outras possibilidades para usar habilidades para lidar com a sua emoção.

“Indivíduos com transtorno de personalidade borderline apresentam uma forte necessidade de proximidade emocional e física com outras pessoas, sofrem de medos de abandono e apresentam grande sensibilidade à rejeição sob condições de estresse. Portanto, as experiências de confinamento e de isolamento social podem ser, sim, exaustivas para esses indivíduos, pois podem desencadear sentimentos negativos sobre si mesmos e sobre os outros, com uma intensificação dos conflitos interpessoais devido à má interpretação da distância dos outros em termos de abandono ou desinteresse”, finaliza Higa Kaio.

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