Ao longo do nosso desenvolvimento, da infância até a vida adulta, somos cercados por sons e músicas que formam a nossa identidade
Ao longo do nosso desenvolvimento, da infância até a vida adulta, somos cercados por sons e músicas que formam a nossa identidade| Foto: Alireza Attari/Unsplash

Talvez a cena mais profundamente tocante de qualquer filme da Pixar – e a concorrência é acirrada – é o momento em que Miguel, o protagonista de Viva - A vida é uma festa (2017), desperta a sua bisavó Coco de sua impassibilidade ao cantar “Lembre de mim”, a canção que o pai dela lhe cantava quando pequena. O menino conta que, no além, conheceu o pai de Coco, mostra-lhe o seu violão, lhe apresenta uma foto, mas a idosa permanece inerte. A memória musical era o único caminho que restava a Coco para que suas emoções despertassem e ela pudesse se expressar.

O filme é uma obra-prima sobre esses dois temas – a memória e a música –, mas está longe de ser o único em que a memória musical desempenha um papel fundamental. Sejam as primeiras notas do tema musical de Mia e Sebastian em La La Land (2016), que despontam em momentos chave do filme, ou a cena de Ratzinger e Bergoglio em torno ao piano em Dois papas (2019), que projeta os dois personagens em um percurso de mútua empatia, a importância da memória musical nos filmes apenas reflete o papel que ela tem em nossas vidas.

Isso a nossa própria experiência pode comprovar, quando ouvimos uma música que nossa família cantava durante a nossa infância, que aprendemos nos primeiros anos da escola ou que esteve associada às nossas amizades ou amores da juventude e ao processo de construção da identidade típico dessa fase. “Ao longo do nosso desenvolvimento, da infância até a vida adulta, nós somos cercados por sons e músicas, músicas que a família escutava, músicas da escola, músicas que tocavam no rádio, na tevê e, hoje, na internet”, aponta a musicoterapeuta Gabriely Leme Garcia, do Espaço Terapêutico Flamins.

“Nós chamamos isso de identidade sonoro-musical, por ser algo que destaca nossa individualidade em relação ao mundo”, explica a musicoterapeuta. “Ao escutarmos uma música que faz parte da nossa identidade sonoro-musical, consequentemente memórias serão acionadas, bem como as emoções que estão ligadas a elas. Isso acontece pelo que nós chamamos de memória musical”.

“As práticas musicais da infância e da adolescência, sejam elas no ambiente doméstico, escolar ou qualquer outro espaço que frequentemos, são parte da formação do que somos e do que nos tornamos”, afirma Joêzer Mendonça, doutor em Musicologia e professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). “A música integra a construção da nossa identidade subjetiva, da qual faz parte nossa identidade musical. Essa identidade não é fixa, pode ser informada e transformada ao longo de nossa vida, estando sujeita a variações de gosto, personalidade, habilidades e práticas que não cessamos de desenvolver desde que nascemos”.

É essa dinâmica da profunda relação que a memória musical estabelece com as nossas emoções e a nossa autopercepção que abre a possibilidade para processos terapêuticos que giram em torno da música, buscando uma saída para traumas, pendências e situações não resolvidas do passado – o campo de conhecimento e de atuação conhecido como musicoterapia.  “Nós sabemos que a música está constantemente presente no nosso dia-a-dia, que ela marca momentos significativos e, por si só, exerce grande influência em nós e nas nossas emoções. Considerando esses aspectos, já é possível pressupor o potencial da música quando trabalhada em um processo terapêutico, com um profissional musicoterapeuta qualificado”, afirma Gabriely.

Exercida por um profissional qualificado, a musicoterapia pode até mesmo melhorar a qualidade de vida de uma pessoa com diagnóstico de doença de Alzheimer – perfil de parte dos pacientes de Gabriely. “Alguns estudos já permitem ter conhecimento que a música é um grande aliado para amenizar os sintomas da doença. A música pode ser um caminho para acessar memórias da infância ou de outras fases da vida. Isso porque a doença de Alzheimer compromete áreas cerebrais diferentes daquelas que são acionadas ao ouvirmos uma música”, explica a musicoterapeuta. “Às vezes esses pacientes não conseguem recordar do próprio nome, não reconhecem os filhos, mas ao ouvir essas músicas que pertencem às suas histórias, passam a interagir, cantando, tocando e trazendo também lembranças de quem eram e do que viveram”.

Para Mendonça, mesmo quando não se trata de uma resposta a uma condição de saúde mental específica, identificar a trilha sonora da própria vida e acessar a memória musical pode ser uma experiência humanizadora por excelência, independentemente das emoções que traga à tona – alegria, saudade, tristeza, dor ou bem-estar.

“Talvez essa viagem em nossas memórias tenha um efeito de catarse, talvez não nos faça nem melhores nem piores seres humanos”, avalia o professor. “Mas essa trilha sonora única que cada um traz consigo nos lembra de que somos apenas humanos, cheios de experiências vividas e compartilhadas com outras pessoas e que se emocionam ao som dos primeiros compassos de uma música. E penso que este é um tempo em que precisamos aguçar nossa humanidade”.

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