Da série As Sete Eras do Homem: “A justiça” (entre 1798 e 1801), de Robert Smirke.
Da série As Sete Eras do Homem: “A justiça” (entre 1798 e 1801), de Robert Smirke.| Foto: Domínio público

“Felizes os famintos de justiça, que nunca serão saciados!” A afirmação – aparentemente pessimista – do filósofo francês André Comte-Sponville sugere que um mundo realmente justo seja uma utopia, ou pelo menos, que a luta por esse mundo justo não tenha fim. Isso significa que nunca alcançaremos a justiça? Essa virtude que, segundo Aristóteles, é a “virtude completa”? Bom, a resposta mais coerente seria: depende.

Para o filósofo Alain, “a justiça não existe”, e só existirá se a fizermos. “Eis o problema humano”, afirma. Percebemos, de inúmeras maneiras, que, sim, existe no ser humano um desejo por justiça e, consequentemente, um lamento e um sofrimento pela injustiça. Notamos isso, por exemplo, na necessidade de formulação das leis. Para Aristóteles, “o justo é o que é conforme a lei e o que respeita a igualdade, e o injusto o que é contrário à lei e o que falta com a igualdade”.

Mas o que nos garante que todas as leis são realmente justas? Não há garantia. E pior, a realidade nos leva a concluir que muitas não são. Pascal, inclusive, tratava disso com certo cinismo: “A justiça é o que é estabelecido; assim, todas as nossas leis estabelecidas serão necessariamente consideradas justas sem ser examinadas, pois são estabelecidas”. Para Comte-Sponville o desejável é que tanto as leis quanto a justiça caminhem lado a lado, e nisto deve esforçar-se cada cidadão. Afinal, pergunta o filósofo, “quando a igualdade e a legalidade se opõem, onde está a justiça?”

E como as leis nem sempre contribuem para a construção da almejada justiça, também é através da arte que o homem clama por ela, chorando a desigualdade. É o que vemos no poema Funeral de um Lavrador do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto: “Esta cova em que estás / Com palmos medida / É a conta menor / que tiraste em vida. / É de bom tamanho / Nem largo nem fundo / É a parte que te cabe / Deste latifúndio. / Não é cova grande / É cova medida / É a terra que querias / Ver dividida. / É uma cova grande / Para teu pouco defunto / Mas estarás mais ancho / Que estava no mundo”. Essa mesma dor emanada da compaixão pelo semelhante nos leva a refletir e a meditar sobre a justiça. O que é? De onde surge? Ao menos existe?

Igualdade

“A igualdade dos bens seria justa”, dizia Pascal. E como não seria, se a desigualdade, reflete Comte-Sponville, “condena uns à miséria ou à morte, enquanto outros acumulam riquezas sobre riquezas e prazeres sobre fastios”? Segundo Platão, a justiça é o que reserva a cada um sua parte, seu lugar, sua função e, assim, se torna possível manter uma harmonia entre os homens. No entanto, Comte-Sponville levanta a reflexão: “Seria justo dar a todos as mesmas coisas, quando eles não têm nem as mesmas necessidades nem os mesmos méritos? Exigir de todos as mesmas coisas, quando eles não têm nem as mesmas capacidades nem os mesmos encargos? Mas como manter então a igualdade, entre homens desiguais? Ou a liberdade, entre iguais? Discutia-se isso na Grécia; continua-se a discuti-lo”.

O próprio filósofo apresenta sua saída: a igualdade essencial à justiça é menos a igualdade dos bens (quase sempre admissível) e mais a igualdade entre os sujeitos. Somos todos iguais, mas com necessidades diferentes. A igualdade acontece quando somos capazes de suprir as necessidades de cada ser humano. Naturalmente que no caminho da igualdade se encontra petrificado o egoísmo. É o ato de pensar somente em si, de querer somente para si – cada vez mais e mais –, que resulta na injustiça, na desigualdade. Não se trata de uma pieguice de um mundo onde todos têm, recebem e realizam as mesmas coisas. Trata-se da igualdade do olhar, do encontro; igualdade que nasce da dignidade da pessoa humana – direito soberano.

Por isso, “a justiça é mais e melhor do que o bem-estar e a eficácia, e não pode ser sacrificada a eles, nem mesmo em nome da felicidade da maioria”, lembra Comte-Sponville sobre o pensamento de Rawls e Kant. Soa como: não adianta arrumar desculpas, nem a felicidade individual, nem o bem-estar social podem justificar a injustiça. Afinal, para o filósofo francês, felicidade sem justiça nada mais é do que egoísmo ou conforto. Teria então se realizado a igualdade completamente em algum momento? Mesmo que não, ele sugere que justos são aqueles que tendem a ela e os injustos são os que a ela se opõe. Não se trata de renunciar aos próprios interesses, contudo. Mas de “submetê-los à justiça, e não o contrário”.

Dar ao outro o que lhe cabe

“Pensar em justiça como virtude me faz recordar a noção de justiça para Aristóteles, que define como suum cuique, ou seja, dar a cada um o que lhe é devido”, explica a advogada especialista em direito do trabalho Sissy Zambão Tufanini. Mas o que lhe cabe de acordo com o que? Com a dignidade que há em todo ser humano. Essa parece ser a chave. Para a advogada, “é direito de cada ser humano ser tratado com dignidade, viver com o mínimo de respeito, de modo que se torna assim obrigação do outro garanti-la no que lhe cabe”.

Não se trata apenas de buscar a legalidade, pois, diz Comte-Sponville, ela pode ser injusta. Ele contradiz Kant ao falar que a justiça não é simplesmente obedecer à lei moral pois, se ela existisse, os justos não seriam tão necessários, uma vez que “a justiça bastaria”. Mas ela depende dos justos, depende de quem a faça concretamente. É por isso que buscar essa justiça deveria ser um dever de todo ser humano. Tornar-se justo é uma missão. E não é das mais fáceis.

O filósofo que nos guia nessa reflexão afirma que o mundo resiste, o homem resiste, mas que “é preciso resistir (...) antes de tudo à injustiça que cada um traz em si mesmo, que é si mesmo”. Sua realização não pode ser uma simples atitude moral, não é uma virtude a ser realizada por exigência ou por vanglória. Dessa forma, ela não teria força para vencer o egoísmo. Sissy explica que “a justiça como virtude não é uma atitude para si próprio, mas o é na relação com o próximo, tornando-nos comunidade”. O justo “é aquele que põe sua força a serviço do direito, e dos direitos, e que, decretando nele a igualdade de todo homem com todo outro, apesar das desigualdades de fato ou de talentos, que são inúmeras, instaura uma ordem que não existe, mas sem a qual nenhuma ordem jamais poderia nos satisfazer” afirma Comte-Sponville.

Justiça e caridade

Parece-nos cada vez mais que o desafio da justiça é o mesmo desafio do amor: algo que parece inatingível, distante, que exige a morte do nosso egocentrismo. Não é à toa que a justiça está tão intimamente ligada à caridade. Segundo a advogada Sissy, é ao voltar-nos à caridade que somos impulsionados “a sair de nós mesmos e termos um olhar de respeito para todo aquele com quem convivemos”. Quando olharmos atentamente às diferenças e necessidades de cada um que passa por nosso caminho, “sem minimizar seu sofrimento” e, de forma justa, se possuímos os meios necessários, vamos “em auxílio daqueles que não possuem”.

Comte-Sponville afirma que sem justiça o amor nada mais é do que favoritismo ou parcialidade. O filósofo ateísta chega às mesmas conclusões que os teólogos cristãos dos primeiros séculos. Para São Basílio Magno, aparentemente, o roubo e a omissão não são tão diferentes; afirma ele que “aquele que despoja um homem de suas vestes recebe o nome de saqueador. E aquele que, podendo fazê-lo, não veste a nudez do mendigo, merece por acaso outro nome? Ao faminto pertence o pão que você retém (...) ao miserável, o dinheiro que você guarda escondido”. São Gregório Magno é ainda mais exigente: “Aqueles que não compartilham o que receberam causam cruelmente a morte de seus próximos, porque todos os dias matam todos os que morrem de pobreza, negando-lhes socorro e apenas acumulando riquezas para si próprios”. Para ele, dar ao pobre o que necessita não é um ato a ser admirado, é apenas devolver o que lhes pertence. É o pagamento de uma dívida de justiça, e não um ato de misericórdia.

Para nós, afirma Bento XVI, trata-se de duas realidades diferentes. Enquanto a justiça é dar ao outro o que é devido, a misericórdia é doar por bondade. Para Deus as coisas são inseparáveis, “n’Ele, justiça e caridade coincidem: não existe uma ação justa, que não seja também um gesto de misericórdia e de perdão e, ao mesmo tempo, não há uma ação misericordiosa que não seja perfeitamente justa”. O desafio proposto pelo papa emérito é exatamente o de captarmos o verdadeiro sentido da justiça e da liberdade. Trata-se da liberdade da lei que São Paulo descreve em suas cartas. Obedecer à lei, ou ser justo por cumprir o que nos é devido, ou mesmo exigido, é, antes, uma prisão. O verdadeiro cumprimento da lei é a caridade. Para o apóstolo, o Espírito de Cristo nos leva a amar e nos faz cumprir a lei sem precisarmos dela. Somos livres da lei porque a justiça não estaria mais escrita nas pedras (ou nos papéis) mas na carne de nossos corações.

À mesma conclusão que Paulo alcançou pela teologia, Comte-Sponville, que escreveu “O Espírito do Ateísmo”, chega pela reflexão filosófica através de sua hipótese do amor universal: “se cada indivíduo fosse cheio de amizade, de generosidade e de benevolência para com seus semelhantes, não precisaria mais de leis, nem precisaria respeitar para com eles um dever de igualdade: o amor iria além do simples respeito dos direitos, como se vê nas famílias unidas, e faria as vezes de justiça”. É o que afirma também Bento XVI em sua encíclica Caritas in Veritate. “A caridade supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é meu; mas nunca existe sem a justiça, que induz a dar ao outro o que é dele, o que lhe pertence em razão do seu ser e do seu agir. Não posso dar ao outro do que é meu, sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por justiça”. A justiça é “inseparável da caridade” é o “primeiro caminho da caridade ou como chegou a dizer Paulo VI, ‘a medida mínima’ dela”.

O amor vai além. A justiça é como que condição mínima para o amor. Quem ama é justo, caso contrário é egoísta e não ama. Comte-Sponville provoca lembrando Pascal: “‘Só há dois tipos de homens: os justos que se crêem pecadores e os pecadores que se crêem justos.’ Mas nunca sabemos em qual dessas categorias nos classificamos – se soubéssemos já estaríamos na outra!”. Isso implica dizer que o combate pela justiça não terá fim, e o faz concluir que “esse Reino, pelo menos, nos é proibido”. Sissy ousa dizer “que jamais nos sentiremos plenamente justos, uma vez que somos preenchidos por fome e sede de justiça”. Contudo, o desafio não gera frustração, desânimo e desesperança. O Reino proibido de Comte-Sponville é o mesmo que resulta da determinação: “já estamos nele só quando nos esforçamos para alcançá-lo”. Há aquele bom tom de esperança, de alegria antecipada pelo porvir, quando já o estamos construindo quando amamos.

“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”.

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