"Diógenes à procura de um homem honesto", atribuído a JHW Tischbein (c.1780).
“Diógenes à procura de um homem honesto”, atribuído a JHW Tischbein (c.1780).| Foto: Domínio público

Logo no início do primeiro episódio do documentário O começo da vida (2016), o psicólogo norte-americano e especialista em desenvolvimento infantil Andrew N. Meltzoff comenta a incrível capacidade de desenvolvimento que um bebê tem nos seus primeiros três anos de vida: de um recém-nascido que saiu da maternidade e mal sustentava a própria cabeça a uma criança de 3 anos que já pode andar, falar e, inclusive, mentir a respeito de algo. “Se eles têm migalhas de biscoitos pela boca quando não deveriam ter comido os biscoitos, você pergunta ‘você comeu o biscoito?’, e ele responde ‘não, eu não comi biscoito’. Então, aos 3 anos de idade eles já sabem enganar, sentir empatia pelos outros, etc.”, explica Meltzoff.  

No livro Why we lie (em português, Por que mentimos?), ao falar sobre o quanto a mentira está ligada à natureza humana, o filósofo da Universidade de New England, EUA, David Livingstone, defende que “não teria sido inadequado chamar o homem de Homo fallax (homem enganador) em vez de Homo sapiens (homem sábio)”. O fato desse vício ser algo tão enraizado em cada um de nós torna ainda mais nobre a virtude da qual vamos tratar nesse artigo: a honestidade.  

Dentro das tradições filosóficas, as virtudes são apresentadas como elementos fundamentais para o ser humano. Para Aristóteles, elas são “hábitos dignos de louvor” e é através delas que alcançamos a excelência humana. Mas o que seria então a honestidade, essa virtude que Nietzsche chamou de “nossa virtude, a última que nos restou”? Para o filósofo francês André Comte-Sponville, a honestidade, que ele prefere chamar de boa-fé, é um fato – da perspectiva psicológica – e uma virtude – da perspectiva moral. “Como fato, é a conformidade dos atos e das palavras com a vida interior, ou desta consigo mesma. Como virtude, é o amor ou o respeito à verdade”, afirma o filósofo.

Honestidade com os outros e conosco mesmos 

Isso significa que ser honesto é dizer sempre a verdade? Não exatamente, pois, segundo o filósofo, sempre podemos nos enganar. Mas ser honesto é “pelo menos dizer a verdade sobre o que cremos”. Uma pessoa honesta “tanto diz o que acredita, mesmo que esteja enganada, como acredita no que diz”, aponta Comte-Sponville. E é por isso que essa relação da pessoa com a verdade é considerada uma relação de fidelidade naquilo que se crê. “Fidelidade ao verdadeiro, antes de tudo: mais vale uma verdadeira tristeza do que uma falsa alegria”. 

Só que essa dinâmica não rege somente a nossa relação com as outras pessoas, mas também conosco mesmos. A honestidade exige “o máximo de verdade possível, de autenticidade possível, e o mínimo, consequentemente, de artifícios ou dissimulações” tanto entre os homens, como dentro de cada um deles, diz o filósofo. Para o moralista francês François de La Rochefoucauld, essa virtude é uma verdadeira “abertura de coração que nos mostra tais como somos; é um amor à verdade, uma repugnância a se disfarçar, um desejo de reparar seus defeitos e até de diminuí-los, pelo mérito de confessá-los”. 

Aristóteles explicava que o homem verídico é aquele que “ama a verdade” e que, por isso, recusa a mentira. É “um homem sem meandros, sincero ao mesmo tempo em sua vida e em suas palavras, e que reconhece a existência de suas qualidades próprias, sem nada acrescentar a elas e sem nada delas subtrair”, dizia o filósofo grego. “O homem verídico se ama como é, como se conhece, e não como gostaria de parecer ou de ser visto. É o que distingue o amor a si do amor-próprio, ou a magnanimidade, como diz Aristóteles, da vaidade”, reitera Comte-Sponville.

Franqueza a todo custo? 

Numa divertida série chamada “The Good Place” (2016 - “O bom lugar”, em referência ao paraíso), Chidi – aviso de spoiler – vai para o inferno por ser “honesto demais”. O personagem é um professor de ética que não mentia nunca e com isso acabou tornando miserável a vida de diversas pessoas ao seu redor. O personagem fazia isso por ser fiel ao pensamento de Kant, que afirmava não haver circunstâncias em que a mentira seria aceitável. Para o filósofo do século XVIII, ao mentir utilizamos a pessoa com quem interagimos como objeto para alcançar nossa própria vontade. Ou seja, tiramos dessa pessoa o que há de mais humano, a possibilidade de escolher a finalidade de seus atos. E isso era inaceitável para Kant.  

Quinhentos anos antes, Tomás de Aquino haveria de concordar com Kant. Em sua mais importante obra, a Suma Teológica, ele afirma que toda a mentira é pecado, ou seja, inaceitável. Ao se perguntar sobre o dilema de que se é permitido mentir para salvar a vida de alguém, acreditava que, mesmo para evitar algum perigo, não poderíamos “proceder desordenadamente”, ou seja, mentir. 

Mas como tudo no decorrer da história torna-se mais complexo, e mais e mais reflexões vão se acumulando, surge o drama do amigo procurado. Esse dilema se torna mais realista na crítica que Benjamim Constant faz a Kant. Ele comenta que a mentira seria possível caso um assassino batesse à sua porta a procura de um amigo que se esconde em sua casa. Nesse caso poderíamos mentir. Kant discorda, e sugere apenas a omissão. Para ele, mentir coloca toda a humanidade em cheque de credibilidade, por isso é tão incisivo nesse ponto. 

Comte-Sponville também opina sobre o tema e exemplifica: “Você abriga um judeu ou um resistente em seu sótão. A Gestapo, que o procura, interroga você. Você irá dizer-lhes a verdade? Irá se recusar a responder (o que daria na mesma)? Claro que não! Qualquer homem honrado, qualquer homem de coração e mesmo qualquer homem de dever irá sentir-se não apenas autorizado, mas obrigado a mentir. É o que digo: a mentir”. Para o filósofo e musicólogo francês Vladimir Jankélévitch, “mentir aos policiais alemães que nos perguntam se escondemos um patriota em casa não é mentir, é dizer a verdade; responder: não há ninguém, quando há, é [nessa situação] o mais sagrado dos deveres.”

Honestidade na caridade 

Toda essa discussão nos leva a reflexão de que, assim como acontece com todas as outras virtudes, a honestidade perde o seu sentido se estiver longe da caridade. Para Mário Sanches, professor de bioética na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), uma pessoa que se diz honesta, mas que fala tudo o que pensa sem muita reflexão, não vive a honestidade como uma virtude, mas sim a transforma em arrogância. “Se em algum momento a minha ‘honestidade’ ou a minha ‘franqueza’ machucar alguém, é preferível que eu me cale”, explica o professor.  

Sanches observa que, no campo da bioética, por exemplo, há sempre a necessidade de o profissional ser honesto com o seu paciente. Só que, no entanto, ser honesto significa falar aquilo que o outro tem condições de ouvir. “Se uma notícia destrói o outro, é melhor pensar duas vezes e falar em um outro momento, de outro modo”, afirma. Ou seja, ter essa sensibilidade em relação ao outro é fundamental para o exercício da honestidade.  

“Aquele que é honesto pode ser visto como alguém que não viola a ética, mas que também não maltrata o próximo, que de maneira alguma iria prejudicar alguém. Não culpa terceiros. Temos uma nobreza muito grande nessa virtude”, afirma Sanches. “Assim também ela tem que estar pautada no princípio maior da caridade. Se pensamos a honestidade a partir do princípio da caridade, então será honesto aquele que for honesto no amor, aquele que honestamente ama a Deus e honestamente ama o próximo. Então, deixa de ser apenas uma virtude de nobreza interior, passa a ser um projeto de vida”.

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