Se Deus é amor, “ele está em tudo que é bom” e “é ele a bondade que cada coisa tem”: disso Juliana de Norwich estava convencida
Se Deus é amor, “ele está em tudo que é bom” e “é ele a bondade que cada coisa tem”: disso Juliana de Norwich estava convencida| Foto: Felipe Koller

Este é o quarto texto de uma série de 12 artigos que abordam, cada um deles, a contribuição de alguma figura da história das religiões que tenha se destacado por sua experiência, sua sensibilidade e seu pensamento no que toca ao relacionamento do ser humano com o mistério de Deus. O Sempre Família publica um texto novo dessa série a cada segunda-feira. Já falamos de Bernardo de Claraval, Etty Hillesum e Gregório de Nissa.

Pelo menos desde que a Primeira Carta de João foi escrita, os cristãos professam que Deus é amor e de geração em geração se aprofundam na riqueza inesgotável dessa afirmação. De sua ermida na Inglaterra da virada do século XIV para o XV, Juliana de Norwich é uma das vozes que se destacam nesse percurso, levando totalmente a sério a identificação que o cristianismo faz entre Deus e o amor.

“Vi com certeza que, quando Deus nos criou, já nos amava, e tal amor nunca diminuiu nem diminuirá. Nesse amor ele fez todos os seus trabalhos, fez todas as coisas benéficas a nós, e nesse amor nossa vida é eterna. Na nossa criação tivemos um princípio, mas o amor em que nos fez estava nele desde a eternidade; nesse amor temos nosso princípio”, escreveu Juliana na última página de seu único escrito, em que procurou aprofundar, no decorrer de sua vida, uma visão que teve em um dia de maio de 1373, quando tinha 30 anos de idade.

Se Deus é amor, “ele está em tudo que é bom” e “é ele a bondade que cada coisa tem” – disso Juliana estava convencida. Segundo a sua visão, estamos profundamente arraigados em Deus. O pecado não foi e não é capaz de negar que é em seu útero maternal que vivemos. “Nada pode estar entre Deus e nossa alma”, escreveu ela. “Deus nunca está fora da alma, na qual habita alegremente e sem fim”.

“Deus está mais próximo de nós do que a nossa própria alma, pois ele é o fundamento em quem nossa alma repousa”, afirmou Juliana. “Nossa alma se assenta em Deus no verdadeiro descanso e nossa alma se assenta em Deus na verdadeira força, e nossa alma está naturalmente enraizada em Deus no amor infinito. E, portanto, se desejamos ter conhecimento de nossa alma, comungar e envolver-nos com ela, é necessário buscar nosso Senhor Deus, em quem ela está incluída”.

Essa presença de Deus em nossa interioridade é tão real que é “quando verdadeira e claramente vemos e sabemos o que é o nosso eu” que “verdadeira e claramente vemos e conhecemos nosso Senhor Deus, em plenitude de alegria”. É ele o nosso autor, é nele que “vivemos, nos movemos e somos” (At 17,28), é ele quem sustenta a nossa existência. Nada pode nos separar de seu amor. “Aonde irei, para estar longe do teu sopro? Aonde fugirei, para estar longe da tua face? Subo aos céus, aí estás! Deito-me nos infernos, aí estás! Tomo as asas da aurora para habitar além dos mares, também lá, tua mão me conduz, tua destra me segura”, como exclama o salmista (139, 7-10).

Quando o cristianismo engatinhava, os Padres da Igreja já haviam interpretado a narrativa de Gênesis sobre a criação no sentido de que, após o pecado, a imagem de Deus permanece no ser humano, enquanto a sua semelhança precisa ser recuperada. Juliana não se apoia tanto nessa linguagem, mas a sua insistência nessa presença incessante de Deus na nossa interioridade reflete a concepção de uma imagem de Deus que é indelével.

É precisamente prestando atenção a essa presença amorosa de Deus na interioridade que a pessoa pode recobrar a semelhança com ele. “Ele ensinará à alma como deve comportar-se quando o contempla”, explicou Juliana. Cristo, que assume a nossa natureza humana e sensível, fazendo com que tudo aquilo que somos se insira definitivamente na realidade divina, é o amor de Deus, “o fundamento de todas as leis”: ele “faz por nós o que nos ensina a fazer”, isto é, ama a despeito do pecado.

Essa relação entre a união a Deus pela natureza e a união a Deus pela obra da redenção é bem expressa quando o texto diz: “Assim, em nosso Pai, Deus Todo-Poderoso, temos nosso ser, e em nossa Mãe de misericórdia temos nossa reforma e restauração, e essas nossas partes unidas e juntas fazem o homem perfeito; e pela recompensa submissa e o dom da graça do Espírito Santo somos realizados”. A “Mãe de misericórdia” aqui é o Cristo – Juliana é pródiga em enxergar nas pessoas da Trindade atributos femininos. O nosso ser nunca deixou de estar enraizado naquele que nos gerou, o Pai. Quando o Filho assume a nossa humanidade, nos “reforma” e “restaura”, gerando o “homem perfeito”, que está mergulhado na vida de Deus e expressa isso em sua vida.

Essa realização da semelhança divina se verifica pelos seus frutos: “A alma é unida a Deus quando está verdadeiramente pacificada e em amor, pois nele não é encontrada nenhuma ira”, escreveu Juliana. É um dos pontos de sua visão que ela destaca: “Vi realmente que nosso Senhor nunca esteve irado, nem nunca estará. Pois ele é Deus: bom, vida, verdade, amor, paz; sua caridade e sua unidade não padecem de ira. (...) Deus é a bondade que não pode se irar, pois não é nada senão bondade”, defendeu ela. “Se Deus pudesse estar irado por um instante, nunca teríamos vida, nem lugar, nem mesmo ser”.

Saborear a presença de Deus na alma e, a partir daí, iluminar o nosso entendimento é um caminho – exige tempo. Juliana levou 15 anos para se aperceber do sentido unificador de sua visão, ouvindo interiormente: “Desejas aprender a intenção do teu Senhor nessa coisa toda? Aprende-o bem: o amor foi sua intenção. Quem o mostrou a ti? Amor. O que mostrou a ti? Amor. Por que o mostrou? Por amor”.

É o amor a garantia de que tudo acabará bem, apesar dos contextos conflituosos em que vivemos. É o amor que dará sentido à história e é no amor que serão reconciliadas todas as coisas. “Assim como a Santíssima Trindade criou todas as coisas a partir do nada, assim então a mesma Santíssima Trindade fará ficar bem tudo o que não está bem”, escreveu Juliana.

O rosto do Deus que lhe fala em sua visão é a própria expressão disso: “Tudo isso ele me revelou cheio de felicidade, mostrando assim: ‘Vê! Eu sou Deus. Eu estou em todas as coisas. Vê! Eu fiz todas as coisas. Vê! Eu nunca retiro as minhas mãos da minha obra, nem nunca retirarei, eternamente – vê! E conduzo todas as coisas até o final que ordenei desde o início dos tempos, pelo mesmo poder, sabedoria e amor com os quais as criei. Como poderia alguma delas ser errada?”

Juliana de Norwich (c. 1342-c. 1430) foi uma anacoreta e teóloga cristã britânica. Em Revelações do amor divino, como ficou conhecido seu único escrito, ela afirmou ter tido uma experiência mística aos 30 anos de idade. Viveu boa parte da vida como anacoreta em uma ermida junto à igreja de São Juliano, em Norwich, na Inglaterra. É tida como a primeira autora de língua inglesa.

Felipe Koller é repórter do Sempre Família e professor de Teologia. É mestre e doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

Deixe sua opinião