Gregório de Nissa foi um dos primeiros grandes representantes da teologia apofática, que sublinha a inefabilidade de Deus
Gregório de Nissa foi um dos primeiros grandes representantes da teologia apofática, que sublinha a inefabilidade de Deus| Foto: Felipe Koller

Este é o terceiro texto de uma série de 12 artigos que abordarão, cada um deles, a contribuição de alguma figura da história das religiões que tenha se destacado por sua experiência, sua sensibilidade e seu pensamento no que toca ao relacionamento do ser humano com o mistério de Deus. O Sempre Família publicará um texto novo dessa série a cada segunda-feira. O primeiro foi sobre Bernardo de Claraval e o segundo abordou a figura de Etty Hillesum.

Deus nos sacia – e não sacia. Ele está sempre presente – e sempre ausente. Ele vive dentro de nós – e, no entanto, um abismo nos separa. Da experiência da vida, emergem essas verdades aparentemente contraditórias, esses paradoxos. A história do pensamento cristão chamou a segunda parte de cada uma dessas afirmações de teologia negativa, ou apofática. É aquela que sublinha a inefabilidade de Deus e a noção de que conhecemos melhor o que Deus não é do que o que ele é.

Gregório, bispo de Nissa no século IV, foi um de seus primeiros grandes representantes. Na Carta aos Filipenses, Paulo se descreve como alguém que “esquece o caminho percorrido e anseia com todas as forças pelo que está à frente” (Fl 3,13). Por trás dessas palavras do apóstolo, está o conceito de epektasis, esse avançar insaciável. É em torno dessa noção que Gregório amarra a sua teologia da experiência cristã, ciente dos paradoxos que a envolvem.

Em uma de suas principais obras, a Vida de Moisés – que não é uma biografia, mas uma narrativa simbólica sobre o caminho da mística cristã –, Gregório afirma que a perfeição tem um único limite: não tem limites. Se Deus é perfeito e infinito, então é incompreensível: pode-se entrar no conhecimento de Deus, mas nunca o apreender totalmente, terminar de conhecê-lo, delimitá-lo.

Por outro lado, entra-se no conhecimento de Deus não a partir de teorias e abstrações, mas com a experiência, abrindo-se a uma relação com ele, percebendo-o intimamente. Quanto mais essa experiência de Deus nos satisfaz, mais a desejamos – mais, como dizia Paulo, “ansiamos com todas as forças pelo que está à frente”. Esse caminho nunca termina: sempre há mais à frente.

A percepção da presença divina (em grego, aesthesis parousias) é, portanto, dinâmica. Na Vida de Moisés, Gregório lê o Livro do Êxodo como uma série de três revelações divinas – três teofanias. A primeira é a que se dá na sarça ardente, e é uma experiência de iluminação. Na segunda, porém, Moisés é envolvido nas nuvens escuras daquilo que é desconhecido: é a teofania do Sinai.

Se na primeira é dado a Moisés o entendimento de que Deus é o próprio Ser, na segunda esse entendimento encontra um limite: Deus permanece o Desconhecido. “É a visão que consiste em não ver, porque aquilo que se busca transcende todo o conhecimento”, escreve Gregório. Quanto mais nos aproximamos do conhecimento de Deus, mais fica claro o que não conhecemos dele.

De certa forma, a terceira teofania listada por Gregório harmoniza as luzes e as sombras das outras duas: é o diálogo entre Deus e Moisés em que o patriarca lhe pede para ver a sua glória. “Moisés ainda não está satisfeito em seu desejo por mais. Ele ainda tem sede daquilo que constantemente o preencheu até a sua capacidade máxima e pede para o alcançar como se nunca nisso tivesse tomado parte, suplicando a Deus que apareça a ele não segundo com a sua capacidade de tomar parte nele, mas segundo o verdadeiro ser de Deus”, escreve Gregório.

Deus se recusa a mostrar o seu rosto, mas permite que Moisés veja as suas costas. “O homem não pode me ver e continuar vivendo”, diz Deus. Gregório interpreta essa justificativa de um modo muito interessante: ele a vê como que uma denúncia de que o discurso que pretende possuir o conhecimento de Deus, não levando em conta a sua inefabilidade, é enganador – está morto.

“Como pode a face da vida ser causa de morte a quem se aproxima dela?”, questiona-se Gregório. “Pelo contrário, o Divino é por sua natureza doador de vida. Ainda assim, o caráter da natureza divina transcende toda característica. Dessa maneira, aquele que pensa que Deus é algo a ser conhecido não tem vida, porque trocou o Ser verdadeiro por aquilo que considera, por sua percepção, ter o ser”.

“Esta é verdadeiramente a visão de Deus: nunca se satisfazer no desejo de vê-lo”, escreve Gregório. Daí a sua interpretação sobre a visão das costas de Deus: a visão de Deus não é um ponto de chegada, estático, mas se dá no caminho – “aquele que segue vê as costas”, diz o capadócio. A visão é a própria busca – e quanto mais buscamos a Deus, mais o vemos e ao mesmo tempo mais percebemos que o que não vemos é maior. Se vemos as suas costas, a sua aparente ausência, então estamos próximos, a alguns passos dele.

A inapreensibilidade de Deus se relaciona com a existência pessoal que lhe é atribuída pelos Padres Capadócios, incluindo Gregório de Nissa. Essa existência pessoal também se estende ao ser humano, criado à imagem de Deus, e está estreitamente ligada à noção de liberdade: o ser humano, em contato com a imagem de Deus em seu interior, tem a capacidade de não se ater à necessidade autoafirmativa da própria natureza e de transcendê-la em direção à comunhão com o outro.

Dada a sua compreensão da relação que o ser humano vive com Deus – sem dúvida fruto de sua experiência –, profundamente marcada pelo desejo, não é nenhuma surpresa que, como muitos místicos cristãos, Gregório também tenha assinado uma série de homilias sobre o Cântico dos Cânticos. Na dança de toque e procura vivida pelo casal que protagoniza esse livro do Antigo Testamento, vemos o cerne da proposta do capadócio: é precisamente no caminho, no tempo e no devir que o amor mora.

Gregório de Nissa (c. 335-c. 395) foi um bispo e teólogo cristão da Ásia Menor. Foi bispo de Nissa, na região da Capadócia, na atual Turquia, entre 371 e 376 e de 378 até 394. Era casado com Teosébia, que morreu c. 385, e assumiu a vida monástica depois disso. Participou do Concílio de Constantinopla, o segundo concílio ecumênico da história do cristianismo, em 381. Escreveu, entre outras obras, A grande catequese, Vida de Moisés, Contra Eunômio e As bem-aventuranças. Com seu irmão Basílio de Cesareia e seu amigo Gregório de Nazianzo, está entre os chamados Padres Capadócios, pensadores de enorme influência na antiguidade cristã.

Felipe Koller é repórter do Sempre Família e professor de Teologia. É mestre e doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

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