O filósofo russo Vladimir Soloviov foi um homem em busca. Nessa busca, percebeu-se, porém, em primeiro lugar, como homem encontrado
Retrato de Vladimir Soloviov por Nikolai Yarochenko, datado de 1892 e conservado na Galeria Tretiakov, em Moscou.| Foto: Domínio público

Vladimir Soloviov foi um homem em busca. Nessa busca, percebeu-se, porém, em primeiro lugar, como um homem encontrado. Aos 9 anos, teve uma experiência que chamou de uma “visão” da Sofia, a Sabedoria divina – a primeira de três, uma delas em visita ao Egito, onde conheceu as antigas habitações dos padres do deserto. A partir dessas visões, elaborou a sua filosofia e a sua teologia, como quem tenta perscrutar e comunicar o que viu de uma vez só de modo intenso.

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Esse “ver de uma vez só” se torna, na verdade, o centro da sua experiência e do seu pensamento. Para Soloviov, a verdade, se é mesmo verdade, deve abraçar tudo aquilo que existe. Ou seja, quando procuro conhecer algo de forma isolada do todo, não posso conhecê-lo realmente. Esse conhecimento se torna oco, se torna uma ilusão, e torna a vida fragmentada. A verdade só pode ser vseedinstvo, termo russo que pode ser traduzido como unitotalidade, oniunidade ou integralidade: é unidade do todo.

Essa unidade não significa uniformidade nem imposição violenta e fundamentalista. Pelo contrário, a liberdade é condição do encontro com essa realidade una. Uma das definições que Soloviov dá de vseedinstvo é “realidade em que cada coisa existe não às custas ou em dano de todo o resto, mas para o seu bem”. Por isso, a proposta de Soloviov é consciente da complexidade das diversas formas e campos do conhecimento. Enxerga-os, porém, como chamados a expressar, de maneiras diversas e sempre livremente, essa realidade fundamental que ele identifica com a Sabedoria que encheu seus olhos.

Soloviov não aceita a ideia de que conhecer Deus nas coisas criadas seria um estado meramente inicial da contemplação, destinado a ser superado a fim de alcançar Deus em sua plenitude para além de tudo que é visível. Toda a realidade visível é chamada a ser imagem do Deus vivo que tudo sustenta e tudo preenche. “O sentido e a razão de ser do mundo, em que está também a verdade, é a união íntima de cada um com o todo”, escreve ele.

Para conhecermos a realidade, não bastam os sentidos nem os conceitos: é necessário o que Soloviov chama de fé. Essa fé afirma a existência do objeto a ser conhecido, mas ao mesmo tempo faz mais do que isso: vê nessa existência aquilo que é comum a tudo o que existe – um conteúdo de unidade entre as coisas e também, portanto, entre o que conhece e o que é conhecido. O conhecimento não seria, pois, possível se o que conhece e o que é conhecido fossem apenas externos um ao outro.

Por isso, Soloviov não hesita em dizer que essa unidade de tudo o que existe, “considerada como força viva e pessoal, é o amor”. Assim, a reflexão racional e a observação empírica, porquanto importantes, precisam ser complementadas e sintetizadas em um outro tipo de conhecimento, que Soloviov chama precisamente de “visão mística”. A mística, portanto, para ele, é uma questão de epistemologia, do modo como conhecemos as coisas.

Esse sentido último a ser conhecido “penetra, com a força infinita do amor, nessas trevas, toma posse de toda a essência do homem, regenera a sua natureza e nele, verdadeiramente se encarna”, escreve Soloviov. O fato cristão da encarnação não pode ser dispensado: é essencial para compreender o sentido do mundo. Soloviov distingue a história em três fases: a fase inicial, até o surgimento do ser humano, ou seja, de uma consciência de si mesmo; a fase seguinte, até a encarnação de Deus em Jesus Cristo; e a fase a partir daí, em que essa presença de Deus no mundo e na matéria é chamada a se expandir, até que Ele seja tudo em todos.

Em vista dessa manifestação plena de Deus na criação, a mística não pode ser uma abstração: é muito concreta, e está intimamente relacionada à arte, à criatividade. Soloviov define a mística como “interação criativa do sentimento humano com o mundo transcendente”, enquanto a beleza é descrita como “transformação da matéria por meio da encarnação, nela, de um outro princípio, supramaterial”. Esse princípio superior é essa realidade viva que sustenta o mundo, é o que Platão chamava “ideia” e a tradição hebraica denominava “sabedoria”.

Quando as coisas, portanto, não conseguem exprimir por si mesmas esse princípio que lhes é superior, o ser humano, capaz de vê-las em relação com esse princípio, colabora para que elas o expressem. A arte cumpre um serviço teofânico, isto é, em vista da manifestação de Deus, e é teúrgica, ou seja, é um fazer divino, é um trabalho divino-humano. Só na artesanalidade da vida, na pessoa concreta e viva tomada por princípio – e não em abstrações –, podem se reconciliar, sem deixar de existirem, as antinomias e os paradoxos que constituem a trama complexa da realidade.

É essa a Sabedoria vislumbrada por Soloviov em suas experiências místicas. Na noção de Sabedoria, se colhe o modo não violento de Deus de conduzir o caos à harmonia, sem que nada seja perdido, atividade da qual somos chamados a participar livremente. A Sabedoria é a guardiã da memória do projeto de Deus: encarnando-se no mundo, é ao fim Reino de Deus, unidade perfeita e diversa entre todas as criaturas e delas com o seu Criador.

Vladimir Soloviov (pode-se grafar também Solov’ëv, Solovyov ou Soloviev) (1853-1900) foi um filósofo, poeta e teólogo ortodoxo russo. Entre as suas principais obras, estão Lições sobre a divino-humanidade, O sentido do amor, A justificação do bem e Os três diálogos.

Felipe Koller é mestre e doutorando em Teologia pela PUCPR e professor visitante da Faculdade de São Basílio Magno e da Católica de Santa Catarina.

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