A partir de sua experiência mística e de solidariedade com os que sofrem, Simone Weil reconheceu que a vida da e na graça é oposta à vida da e na força.
A partir de sua experiência mística e de solidariedade com os que sofrem, Simone Weil reconheceu que a vida da e na graça é oposta à vida da e na força.| Foto: Reprodução/The Ethics Centre

Atenta à situação de vida dos que mais sofrem, a filósofa Simone Weil estava convencida de que era indispensável compartilhá-la com eles. Decidiu então trabalhar como operária numa fábrica da Renault. Ali, contou ela, “a infelicidade dos outros entrou na minha carne e na minha alma”. Depois de um ano, em uma viagem a Portugal, presenciou uma procissão em um vilarejo de pescadores. Foi quando ela, de família judia e formação agnóstica, teve uma certeza: a de que “o cristianismo é, por excelência, a religião dos escravos, que os escravos não podem não aderir a ela, e eu entre os outros”.

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A essa experiência se seguiram outras duas vivências fundamentais, em Assis e em Solesmes, e finalmente o momento de um encontro peculiar com Cristo, enquanto recitava o poema “Amor”, de George Herbert. “Senti, sem estar de maneira alguma preparada, porque nunca tinha lido os místicos, uma presença mais pessoal, mais certa, mais real que a de um ser humano”, contou. Por isso, dizia: “Não necessito de nenhuma esperança, de nenhuma promessa para acreditar que Deus é rico em misericórdia: conheço essa riqueza com a certeza da experiência, eu a toquei”.

A experiência mística de Simone está na raiz de seu olhar sobre o mundo. Até por isso ela dizia que “a prova de que alguém encontrou Deus não está no modo como fala de Deus, mas no modo como fala das coisas terrenas”. No ponto de partida dessa nova visão é o mistério da abdicação de Deus. “O ato da criação não é um ato de poder. É uma abdicação. Por este ato se estabelece um outro reino em relação ao reino de Deus”, escreveu Simone.

“A realidade deste mundo é constituída pelo mecanismo da matéria e da autonomia das criaturas racionais. É um reino de onde Deus se retirou. Deus, tendo renunciado a ser o rei, não pode aqui voltar senão como mendicante”, afirmou ela. “Existe maior abdicação de Deus que o tempo? O tempo é a espera de Deus que mendiga nosso amor”. Essa abdicação de Deus é um mistério que, uma vez saboreado, é capaz de virar de ponta-cabeça a nossa compreensão do mundo. 

“Quando dois seres humanos têm que fazer juntos, e quando nenhum tem o poder de impor ao outro seja o que for, é necessário que se entendam”, explicou Simone. “Mas quando há um forte e um fraco, não há necessidade alguma de unir duas vontades. Não há senão uma vontade, a do forte. O fraco obedece”. Assim, a filósofa e mística abriu uma terceira possibilidade para a velha questão que costuma servir de caminho para o ateísmo: “Ou Deus não é todo-poderoso, ou então Ele não é absolutamente bom, ou então Ele não comanda em todos os lugares onde tem poder”. 

E é aí que Ele abre espaço para a nossa coautoria. “A especificidade da compaixão humana é de poder e dever realizar aquilo que Deus não quer e não pode realizar por si só: louvor a Deus e compaixão para com as criaturas”, escreveu Simone. “Esse sofredor agoniza na estrada. Deus tem misericórdia dele, mas não pode enviar-lhe um pedaço de pão. Mas eu que estou lá, que felizmente não sou Deus, posso dar-lhe o pão. É minha única superioridade sobre Deus”.

Assim, “pertence à ação humana, inspirada pela caridade, preencher a distância entre Deus e o mundo. E isso porque Deus está ausente do mundo, exceto pela existência, neste mundo, daqueles em quem habita Seu amor”. A compaixão humana é, pois, o modo como se manifesta a presença de Deus no mundo. “Em todos os lugares onde os sofredores são amados por causa deles mesmos, Deus está presente”, afirmou Simone. “Aquele que, ao ver um infeliz, transporta até ele o seu ser, faz nascer nele por amor, ao menos por um momento, uma existência independente da infelicidade”.

Porém, “tamanha misericórdia só é possível se o homem, como Cristo, for habitado pelo amor sobrenatural de Deus, ao mesmo tempo em que se identifica com o sofrimento humano”, pois “a misericórdia é um atributo propriamente divino”. É preciso um encontro com o próprio nada, um esvaziamento de si mesmo — um esvaziamento criador, como o que está na origem da criação. Esse esvaziamento dá lugar no próprio ser ao ser de Cristo, plenamente habitado por Deus. 

É um esvaziamento que exige o que Simone chama de atenção. Trata-se de um exercício, mas na chave de um esforço negativo, em que nos colocamos abertos a acolher e não empenhados em buscar: é mais fruto do consentimento que da vontade. “O método para compreender os fenômenos seria: não tentar interpretá-los mas olhá-los até que jorre a luz”, explicou Simone. 

No orgulho há um enrijecimento, uma exaltação do músculo. Por isso, para Simone ao orgulhoso lhe falta graciosidade, lhe falta graça. A vida da e na graça é oposta à vida da e na força. Assim, a atenção se revela como criadora: consiste “em dar atenção ao que não existe”: ao Deus “infinitamente pequeno” e à humanidade que “não existe na carne anônima e inerte à beira da estrada”. A atenção nos torna capazes de ver o invisível. E, como diz Paulo, a fé é precisamente a visão das coisas invisíveis.

Simone Weil (1909-1943) foi uma filósofa e ativista política católica francesa. Atuou também, por razões de solidariedade, como operária, trabalhadora rural e soldado. Morreu devido a uma tuberculose, na Inglaterra, enfraquecida por ter se recusado a receber mais como alimentação do que dispunham os seus compatriotas franceses que resistiam a Hitler.

Felipe Koller é mestre e doutorando em Teologia pela PUCPR e professor visitante da Faculdade de São Basílio Magno e da Católica de Santa Catarina.

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