Escolha de medicamentos ou novos tratamentos, especialmente entre doenças novas, depende dos protocolos e consensos dos médicos
Escolha de medicamentos ou novos tratamentos, especialmente entre doenças novas, depende dos protocolos e consensos dos médicos| Foto: Pexels

Médicos não podem usar qualquer remédio, ou adotar qualquer tratamento, baseados na "intuição" de que algo possa vir a funcionar. Eles seguem o conceito da medicina baseada em evidências, que se traduz, na prática, nos protocolos clínicos.

Ali são descritos, a partir de estudos, quais os medicamentos que mostraram benefícios para a doença investigada, as dosagens utilizadas e os efeitos colaterais esperados, além de outros detalhes. Seguir os protocolos tem sido a maneira mais indicada para o atendimento dos pacientes, e isso vale para momentos pré, durante e pós-pandemia.

No caso da Covid-19, a regra é a mesma, embora o tempo para achar uma resposta seja mais escasso. Diante de uma doença ainda muito nova [os primeiros casos surgiram em Wuhan, na China, no fim de dezembro de 2019 e, no Brasil, em fevereiro], os médicos na linha de frente se baseiam nos achados de profissionais que já estudaram o novo coronavírus.

Para que nada se perca, essas informações (divulgadas em estudos científicos) são compiladas pelas entidades representativas de cada especialidade (as sociedades médicas), além de instituições como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Ministério da Saúde. São para eles que os médicos olham quando precisam de respostas.

Informações contraditórias

Embora nem sempre haja um consenso entre todas as partes, a tendência dos médicos é que sigam os protocolos que estejam mais completos e unificados, de acordo com a médica especialista em Clínica Médica, Maria Betânia Beppler.

Usar (ou não) a hidroxicloroquina se tornou um exemplo dessa questão. Os benefícios da medicação contra a Covid-19 não estão claros, e embora o governo federal possa ampliar o uso para quadros mais leves da doença (atualmente, a Anvisa indica o medicamento apenas em casos graves), isso não significa que os médicos precisarão utilizá-lo.

No dia 18 de março, três sociedades brasileiras divulgaram um consenso para o tratamento farmacológico da Covid-19 no país. Dentre as 11 recomendações, assinadas pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira e as Sociedades Brasileiras de Infectologia e de Pneumologia e Tisiologia, a lista se inicia com a seguinte sugestão:

"Sugerimos não utilizar hidroxicloroquina ou cloroquina de rotina no tratamento da COVID-19 (recomendação fraca, nível de evidência baixo)". A mesma explicação é válida, de acordo com as entidades, para a associação dessa medicação com o antibiótico azitromicina – que também vem sendo estudado em pesquisas clínicas.

Os especialistas abordam ainda outros medicamentos, como oseltamivir, lopinavir/ritonavir, glicocorticosteroides, tocilizumabe, heparinas e antibacterianos. Para alguns há a recomendação, enquanto outros sugere-se o não uso.

Na mesma semana, a Sociedade Brasileira de Imunologia também emitiu um parecer sobre o uso da hidroxicloroquina/cloroquina nos mesmos casos. Para a entidade, a adoção da terapia "vem na contramão de toda a experiência mundial e científica com esta pandemia".

"Baseados nas evidências atuais que avaliaram a utilização da hidroxicloroquina para a terapêutica da COVID-19, a Sociedade Brasileira de Imunologia conclui que ainda é precoce a recomendação de uso deste medicamento na COVID-19, visto que diferentes estudos mostram não haver benefícios para os pacientes que utilizaram hidroxicloroquina."

Vale lembrar que, embora esses sejam as recomendações atuais, estão sujeitas ao avanço de estudos científicos e podem mudar conforme novas evidências forem surgindo. Há ainda, por exemplo, 188 estudos em andamento que avaliam os benefícios da hidroxicloroquina em pacientes com a Covid-19, de acordo com dados da plataforma ClinicalTrials.gov.

Protocolos clínicos

Antes que um protocolo de um novo medicamento ou terapia sejam adotados, conforme explica a médica especialista em Clínica Médica, Maria Betânia Beppler, ele deve passar pelos comitês de ética.

"Quando se descobre uma alternativa de tratamento para uma determinada doença, ela precisa ser submetida a uma série de comitês e crivos para que se possa, de fato, dizer que faz mais bem do que mal", explica a especialista, que é também preceptora do curso de Medicina da Universidade Positivo e coordenadora médica do Hospital Marcelino Champagnat, em Curitiba. "É preciso provar que aquele determinado tratamento é eficiente no propósito a que se dispõe, ao mesmo tempo que não cause mal. Essa é a premissa básica em pesquisa", defende.

Quando se estudam medicamentos, além dos comitês de ética em pesquisa de cada hospital ou instituição (CEP) é preciso também ter a aprovação de um órgão nacional, o Conep - Comitê Nacional de Ética em Pesquisa. A médica pesquisadora do Epicenter (Centro de Pesquisas Clínicas da PUCPR) Silvia Carreira Ribeiro exemplifica essa situação:

Em São Paulo, há um centro coordenador dos protocolos do uso de um medicamento em pacientes com a Covid-19. Esses protocolos foram enviados ao CEP e esse comitê local encaminhou ao nacional. "O Conep aprovou e, a partir disso, cada centro que for fazer essa pesquisa no Brasil deve receber a aprovação do CEP local. Não pode simplesmente aplicar o protocolo", explica a médica, que também é professora da Escola de Medicina da PUCPR.

Na sequência, cada paciente submetido ao estudo deve assinar o termo de consentimento livre e esclarecido ou o TCLE. "Se o paciente não tiver condições, por estar em um quadro grave, o responsável deve ler e assinar, caso aprove. Nesse documento estão todas as informações, como os efeitos colaterais prováveis, os benefícios, se aceita ser randomizada", diz a pesquisadora.

Estudos randomizados e duplo-cegos, padrão ouro entre os pesquisadores, significam que os pacientes são divididos em grupos de forma aleatória e nem eles, nem os médicos, sabem se eles receberão o medicamento ou uma versão placebo (sem efeitos). Isso não significa que as pessoas sorteadas para o grupo placebo deixarão de receber tratamento – elas serão cuidadas com as terapias já conhecidas e comprovadas contra a doença avaliada.

Outro tipo de estudo que oferece evidências sólidas são as meta-análises. "Trata-se da compilação de vários estudos, de todo modelo de trabalho, como revisões, que filtram aqueles que foram bem feitos, confiáveis e traz uma conclusão clara. 'Com base nos estudos revisados, conclui-se que determinada alternativa tem um nível de segurança e aplicabilidade de determinada porcentagem. Mas não temos como concluir meta-análises para a Covid-19 agora. Ainda faz pouco tempo desde que a pandemia passou a circular no mundo", explica Maria Betânia, que conclui: "Ciência não rima com imediatismo".

Pesquisas brasileiras

Todas as pesquisas desenvolvidas no Brasil são cadastradas no portal Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos. Lá é possível verificar quais estudos clínicos estão recrutando participantes, ou mesmo quais novidades estão sendo testadas no país.

"Um paciente com câncer no pulmão, por exemplo, que já se submeteu a todos os tratamentos disponíveis, mas sem benefício, pode ir ao site e procurar por algum estudo clínico de uma terapia nova. Na maior parte das vezes, esses centros de pesquisa estão vinculados a alguma universidade ou hospital e conseguem recrutar por lá, mas se é um paciente com uma doença grave ou de outro estado, pode procurar dessa forma", explica a pesquisadora Silvia Ribeiro.

Quem tiver o domínio da língua inglesa também pode fazer a mesma busca pela plataforma internacional ClinicalTrials.gov, selecionando apenas o país de interesse.

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