O novo coronavírus, responsável pela pandemia de Covid-19, é capaz de invadir o cérebro, podendo provocar uma infecção potencialmente mais grave e letal do que a registrada nos pulmões. A conclusão está em dois trabalhos científicos brasileiros assinados por especialistas da UFRJ, Fiocruz e Instituto D’or, publicados nesta segunda-feira, 14, em plataformas de pré-publicação.
Um terceiro trabalho, da Universidade de Yale, publicado na quarta-feira passada, chega a conclusões semelhantes de forma complementar aos estudos brasileiros.
O principal alvo do coronavírus é o pulmão. Já ficou bem claro, no entanto, que ele também ataca os rins, o fígado, os vasos sanguíneos e o coração, entre outros. Uma parcela de pacientes apresenta sintomas neurológicos, como confusão mental, anosmia (ausência de olfato), delírio e risco aumentado de AVC, sugerindo que o vírus ataca também o cérebro.
"Nosso laboratório trabalha com o cérebro e o sistema nervoso central. Essa era a pergunta natural de se fazer diante dos relatos médicos", afirmou o neurocientista Stevens Rehen, da UFRJ e do Instituto D’or, principal autor dos estudos brasileiros, explicando por que resolveu investigar a questão.
O grupo teve acesso aos resultados de uma necropsia feita em uma criança de 1 ano e 2 meses morta por Covid-19. "Essa é a primeira evidência que temos da presença do vírus dentro do cérebro de uma criança", constatou Rehen. "Os estragos são óbvios, há uma clara destruição dos tecidos." O segundo estudo, feito a partir das observações in vitro, não foi capaz de identificar a replicação do vírus Sars-CoV-2 dentro das células cerebrais, como o grupo já havia demonstrado com o vírus da zika no passado.
Entretanto, ficou constatada uma ligação do vírus com as células da barreira hematoencefálica - que protege o cérebro contra agentes infecciosos. A forte reação inflamatória causada para a defesa do organismo seria responsável pelas alterações neurológicas encontradas.
Com base nas observações das células de laboratório e em células humanas, a hipótese dos autores é de que o Sars-CoV-2 não gera infecção produtiva em células neurais, mas danifica o plexo coroide (a membrana que reveste a estrutura do sistema nervoso que produz o líquido cefalorraquidiano) e enfraquece a barreira hematoencefálica, permitindo que vírus, células imunológicas e citocinas entrem no sistema nervoso central, causando danos no cérebro jovem.
Replicação do vírus em células cerebrais
O estudo da Universidade de Yale, que também foi divulgado em uma plataforma de pré-print, ainda sem revisão por outros especialistas, chega a uma conclusão um pouco diferente. O grupo, liderado pela imunologista Akiko Iwasaki, conseguiu flagrar a replicação do vírus nas células.
Os pesquisadores viram evidências de que o coronavírus pode invadir células cerebrais e se replicar no interior delas, sem destruí-las. Mas o vírus pode "sugar" o oxigênio das células vizinhas, causando a morte dessas células.
O grupo americano estudou o tecido cerebral de um adulto morto por Covid-19, camundongos infectados e também organoides (células cerebrais cultivadas em laboratório). As descobertas são consistentes com observações feitas por outros especialistas, como o brasileiro Alysson Muotri, neurocientista da Universidade da Califórnia, em San Diego, que também trabalha com organoides in vitro. "Poucos dias depois da infecção constatamos uma redução drástica no número de sinapses", afirmou Muotri, em entrevista ao New York Times. "Não sabemos ainda se isso é reversível ou não."
As descobertas são também compatíveis com as observações feitas pelos clínicos na linha de frente do tratamento de pacientes com Covid-19. "Constatamos que a doença apresenta manifestações neurológicas diferentes do que estávamos acostumados a ver", afirmou o infectologista Victor Cravo, coordenador das UTIs do grupo Américas Serviços Médicos. "Há, inclusive, uma necessidade diferente de sedação, não só na quantidade, mas no tipo de sedativos usados. Voltamos a usar drogas que já considerávamos ultrapassadas na UTI porque são pacientes muito difíceis de sedar."
Como o vírus pode chegar ao cérebro
Infecções nos tecidos cerebrais devem ser raras e ainda não está claro para os cientistas como o coronavírus chega ao cérebro. Efeitos neurológicos relacionados à Covid-19 também podem ser resultado da resposta imunológica à infecção.
O vírus entra nas células humanas por meio de uma proteína chamada ECA2, que aparece em diversas partes do corpo, especialmente nos pulmões. Estudos indicam que o cérebro tem uma quantidade relativamente menor dessa proteína, e por isso poderia ser poupado da infecção pelo Sars-CoV-2. Mas, para a imunologista Akiko Iwasaki, está claro que o vírus pode usar essa porta de entrada para infectar neurônios, baseado nas observações de camundongos infectados feitas pelo seu grupo.
Outra hipótese é a entrada do vírus pelo nervo olfatório. Como a perda de olfato é um sintoma comum da doença, desde o início da pandemia, cientistas questionaram se esse nervo seria a rota de entrada para o vírus. Mas um estudo de pesquisadores americanos divulgado em maio não encontrou evidências desse caminho. A análise da autópsia de 67 pessoas que morreram de Covid-19 mostrou a presença do vírus no cérebro, mas em níveis menores na região do cérebro associada ao nervo olfatório.