Ainda que a única certeza que todos nós temos desde o nascimento seja a morte, algumas situações, como o diagnóstico de câncer, nos confrontam com a finitude da vida de forma mais concreta e íntima, acarretando reflexões sobre o próprio sentido da vida.
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E mesmo que o impacto psicológico seja diferente entre as pessoas, considerando o estágio e agressividade da doença, bem como a maturidade, circunstâncias e momento de vida do paciente, segundo a psicóloga obstétrica Malu Leal, um diagnóstico de câncer jamais será uma notícia fácil de receber, independentemente da idade.
Por isso, é comum que aquele que o recebe experimente medo, raiva, culpa, arrependimentos, revoltas e tantos outros sentimentos, seja pela insatisfação com a vida até o momento, pelo diagnóstico recebido ou até mesmo pela incerteza da vida futura. “Os impactos são tamanhos que inclusive podem acarretar alterações no sono, apetite, libido e humor”, acrescenta Malu, que também é doula.
Foram esses mesmos sentimento que Carem dos Santos Neves da Rosa, natural de Viamão, no Rio Grande do Sul, sentiu ao ser diagnosticada com câncer aos 28 anos de idade. “Eu tinha uma vida ativa e, por ser jovem, receber o diagnóstico não foi tranquilo. Mas nunca desisti, sempre acreditei que conseguiria passar por tudo com sucesso”, conta a maquiadora que enfrentou um liposarcoma na pelve e no ombro, em 2017.
Quando o diagnóstico é recebido por uma mulher jovem, com perspectiva de ter uma família e gerar filhos, assim como a maquiadora Carem, é muito possível que, além da angústia e ansiedade, a paciente experimente um luto, especialmente se estivesse planejando ou tentando engravidar, explica a psicóloga.
“Além das preocupações próprias da doença, somam-se questionamentos sobre o tratamento e suas consequências, se irá conseguir engravidar futuramente, se a gestação será de alto risco ou se o filho poderá ter alguma complicação decorrente da quimioterapia ou radioterapia quando for gestado”, destaca Malu ao alertar que, além das repercussões internas, o diagnóstico também reverbera no companheiro e, consequentemente, no relacionamento entre os dois, que pode se fortalecer ou fragilizar.
“Foi algo que mexeu muito comigo. E, embora eu ainda não planejasse uma gestação, eu imaginava meu futuro. Eu queria construir uma família e ser mãe”, conta a gaúcha ao relatar que ao descobrir que o tratamento poderia recuperar sua saúde também retiraria o sonho da gestação.
O tratamento, na grande maioria das vezes, prejudica a fertilidade
Embora o câncer não seja uma doença que torne o paciente infértil, salvo se atingir os órgãos reprodutivos femininos ou masculinos, o tratamento contra a doença, que envolve quimioterapia e radioterapia, muitas vezes, pode causar a infertilidade. Isso porque pode levar à morte dos óvulos ou trazer danos a outros órgãos do sistema reprodutivo.
“O médico foi claro comigo em relação à radioterapia, me explicando o local onde seria realizada, e os órgãos que seriam atingidos, inclusive o útero, impedindo que eu tivesse filhos futuramente, considerando a radiação que eu receberia”, lamentou Carmem ao se recordar do momento que recebeu o diagnóstico.
Isso se dá, de acordo com o cirurgião oncológico e membro do Instituto de Cirurgia Robótica do Paraná (ICRP), Reitan Ribeiro, porque algumas quimioterapias podem diminuir ou acabar com a reserva ovariana, enquanto a radioterapia, se direcionada para um local próximo aos órgãos reprodutivos, pode destruir os folículos ovarianos, através dos raios que atravessam o corpo da paciente.
“A distância entre a radiação e o órgão é muito importante para saber quais serão os impactos secundários na paciente após o tratamento. Com frequência, após radioterapia na região da pelve, o útero sofre fibrose, o endométrio acaba tendo um dano vascular e há falência dos ovários”, exemplifica o médico curitibano.
Uma luz de esperança por meio de um procedimento cirúrgico brasileiro
Contudo, dentre as medidas que poderiam ser adotadas para evitar que a infertilidade acontecesse quando o câncer ocorre em idade reprodutiva, Ribeiro desenvolveu uma técnica para preservar o útero durante a radioterapia na região pélvica. “Chamamos de transposição uterina e trata-se de uma cirurgia que desconecta o útero da pelve e o reposiciona na parte de cima do abdômen, para preservá-lo da radiação durante o tratamento”, define o médico.
Após a transposição, a paciente pode realizar todo o tratamento radioterápico e, de duas semanas a dois meses após finalizar as sessões, os órgãos são realocados no local original, através de nova cirurgia. “O procedimento, que mantém a saúde dos órgãos reprodutivos, desde que o câncer não os comprometa, é realizado de forma minimamente invasiva, com o auxílio da plataforma robótica que permite mais precisão e preservação da região tratada, mantendo a qualidade das funções sexuais”, ressalta o especialista.
Ao afastar os órgãos reprodutores da área da radioterapia, a cirurgia preserva a fertilidade sem alterar os índices hormonais e o funcionamento do útero, ovários e trompa, “inclusive, por estarem conectados ao umbigo, as mulheres continuam com o ciclo menstrual durante o período”, destaca Ribeiro.
Carem, recém-operada para retirada dos liposarcomas, ao tomar conhecimento da cirurgia, decidiu enfrentá-la, mesmo que para isso precisasse sair do Rio Grande do Sul até a capital paranaense. E, logo após finalizar o tratamento com a radioterapia, em menos de três meses, a gaúcha retornou para o reposicionamento dos seus órgãos no local adequado. “O não eu já tinha, então eu fui atrás do sim”, diz a paciente.
E os resultados já começaram aparecer
Dentre as 14 cirurgias já realizadas em Curitiba, três das quatro pacientes que tentaram engravidar obtiveram sucesso. “Elas tiveram um resultado bastante parecido com o da população saudável, já que a taxa de fertilidade das mulheres ao longo de um ano encontra-se em torno de oitenta por cento”, compara o médico.
As gestações foram normais, sem qualquer diferença se comparada à gravidez de uma mulher que não tenha passado por um câncer. “Os bebês nasceram com o peso normal, tiveram um desenvolvimento esperado e as pacientes estão bem e saudáveis”, acrescenta o cirurgião oncológico.
E uma dessas três pacientes foi Carmem que, ao realizar os exames de rotina, em junho de 2021, após descobrir a metástase do liposarcooma no pulmão, soube que estava grávida, antes de iniciar a quimioterapia. “Hoje o meu bebê está com 7 meses. Ele é muito saudável e forte”, conta a maquiadora, ao motivar todas as mulheres a nunca desistirem de seus sonhos. “O meu sonho era ser mãe. Não sabia se seria possível, mas a transposição uterina aumentou as minhas chances de alcançar tal desejo. E hoje, eu sou feliz com meu marido e filho”, conclui ela, que é mãe do Nicolas.
A repercussão do procedimento cirúrgico foi positiva e tão grande que, embora ainda esteja em protocolo de pesquisa, alguns países já pediram autorização para replicá-la. “A probabilidade de uma paciente que faz radioterapia da pelve engravidar é zero, então qualquer procedimento que aumente as chances de conseguir é melhor”, entusiasma Ribeiro.