Sonhos frustrados, mágoas e mesmo a falta de um repertório mais amplo de atitudes que um pai pode ter diante de um filho estão na origem dos fardos que fazemos pesar sobre os nossos filhos
| Foto: Gift Habeshaw/Unsplash

A vida, aos pouquinhos, vai nos ensinando uma verdade fundamental: não somos como gostaríamos de ser. Quando nos damos conta disso, é importante aprender a distinguir entre as expectativas irreais que colocamos sobre nós mesmos e os percursos de transformação do nosso comportamento que são necessários para que não nos tornemos um fardo àqueles que convivem conosco. Um dos âmbitos em que emerge essa distância entre o que somos e o que queremos ser é o exercício da parentalidade: o nosso ser pais e ser mães.

Na raiz da distância entre a expectativa e a realidade estão as feridas que experimentamos em nossa própria infância, adolescência e juventude, que modelam o nosso comportamento e gestam as perspectivas que projetamos sobre os nossos filhos. Cheios de ideias pré-concebidas sobre como nossos filhos devem ser, não damos espaço para a construção da sua autonomia e ao exercício da sua liberdade – e lidar com um outro, com uma pessoa diferente de nós, é fundamentalmente um exercício de liberdade.

“Existem algumas práticas que não são favoráveis ao desenvolvimento da criança, não contribuindo para a sua autonomia, a assimilação de valores, a aquisição de conhecimentos e tudo o mais, desenvolvendo culpa, medo e dependência. São para esses comportamentos que precisamos olhar”, aponta a psicóloga Ana Caroline Bonato da Cruz. “Se os pais pensam que ensinam, ensinam e a criança não aprende, ou se a criança vai contra os valores da família, há aí alguma dificuldade na mensagem – provavelmente algum comportamento dos pais que torna a mensagem confusa”.

É importante prestar atenção às orientações que damos como pais e questionar-se: por que vejo as coisas desse modo? Por que quero que meus filhos ajam de determinada maneira? Assim, consigo distinguir os problemas que são realmente dos meus filhos e aqueles que, na verdade, são meus. “Muitas vezes confundimos esses dois níveis e o que acaba acontecendo é que os filhos se tornam nossos bodes expiatórios. Eles levam o chumbo de coisas que estão mal resolvidas dentro de nós”, afirma a psicóloga.

Cicatrizes

Sonhos frustrados, ranços alimentados, mágoas guardadas e até mesmo a falta de um repertório mais amplo de atitudes que um pai pode ter diante de um filho estão na origem dos fardos que fazemos pesar sobre os nossos filhos. “Acompanhei um caso em que o pai estava convicto de que a filha sofria bullying pela mesma questão que ele sofria na infância. Mas não havia indícios de que isso acontecia com a menina. É uma ferida que ficou no pai, por ter sido muito dolorido para ele viver aquilo”, conta Ana Caroline.

“É muito importante para o bom desenvolvimento dos filhos que os pais permitam-se se revisitar para entender o que os incomoda tanto em determinados contextos da educação dos filhos”

Pessoas que tenham tido a experiência de ser traídas podem exigir, de maneira descomedida, que o filho conte tudo o que acontece com ele – desconfiando de que ele está mentindo quando, na verdade, não está. Por outro lado, situações de luto muito dolorosas que um dos pais tenha vivido durante a primeira infância do filho podem conduzir a um isolamento que acaba afetando o seu papel de provedor de carinho para a criança. Isso tem impacto na construção do laço entre pai e filho – a relação pode se tornar fria e até tóxica.

A psicóloga orienta: diante de alguma atitude que temos diante de nossos filhos, é muito oportuno perguntar-se para que estou fazendo isso. “O ‘para quê’ vai dar a resposta sobre qual o sentido disso no contexto da educação dos filhos. Faço isso para que meu filho tenha uma boa educação, para que ele aprenda a dividir, para que ele respeite os outros – ou para que eu desconte nele o que minha mãe fez comigo ou para extravasar a minha raiva?”, exemplifica Ana Caroline.

Caminhos

Uma as grandes questões que preocupam os pais nesse sentido é a incoerência entre as regras dadas aos filhos e o comportamento dos próprios pais. São esses pontos, quando não conseguimos dar conta daquilo que estamos exigindo, que devem ser observados com atenção. “É importante que os pais entendam que podem ir mudando a forma como exercem a parentalidade. Não é preciso se ater a um modelo engessado, porque os pais mudam e os filhos também mudam”, sublinha a psicóloga. “A parentalidade é um exercício em construção e está tudo bem não dar conta em alguns momentos ou ter dúvidas. É normal”.

“É muito importante para o bom desenvolvimento dos filhos que os pais permitam-se se revisitar para entender o que os incomoda tanto em determinados contextos da educação dos filhos”, sublinha Ana Caroline. “É importante prestar atenção ao que os filhos nos dizem. Às vezes achamos que se trata apenas de uma reclamação boba, mas na verdade não queremos ouvir porque eles estão apontando justamente para o nosso ponto fraco”.

Essas questões mais graves, que percebemos que afetam os nossos filhos, podem receber ajuda de um psicólogo. Ana Caroline recorda que isso não necessariamente significa recorrer à psicoterapia, se o pai ou a mãe ainda não se sente confortável com isso: os profissionais da psicologia oferecem também consultas de orientação aos pais. “Nesse processo, o psicólogo ajuda a entender os momentos de falhas como pai e monta com você outras estratégias”, explica.

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