Se quem não é cristão pode ser salvo, para que ser cristão? Ratzinger explica
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A série de textos Redescobrindo Ratzinger revisita o legado teológico do papa emérito Bento XVI, em comemoração aos cinco anos de sua renúncia e aos cinquenta anos da publicação de Introdução ao cristianismo, uma de suas principais obras. Em cada texto, será apresentado alguma obra de sua carreira – um dom à Igreja muito mais rico e surpreendente do que a imagem conservadora que se tenta perpetuar.

Leia a parte I: A Igreja: um corpo a serviço da humanidade ou uma comunidade de salvos? Ratzinger explica

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“Estamos salvos?” Essa pergunta é o título de um sermão, o primeiro de uma trilogia, pregado pelo padre Joseph Ratzinger na catedral de Münster, no advento de 1965 – logo após o encerramento do Concílio Vaticano II. “A teologia cristã fez do reino de Deus um reino celeste, situado no além; a salvação do ser humano se tornou salvação da alma, que também se realiza no além, depois da morte”, diz Ratzinger, então com 38 anos, para ao fim arrematar: “Mas com isso não se responde a nada” (p. 21).

Os três sermões, dirigidos a um público formado por estudantes, estão reunidos em uma edição intitulada Do sentido de ser cristão (Vom Sinn des Christseins, 1965; publicado em português pela editora portuguesa Principia em 2009). E por que o hoje papa emérito diz que aquela forma de pensar é vazia? “Porque a grandiosidade da mensagem consiste em que o Senhor não fala apenas do além e da alma, e sim chama a todo ser humano em sua corporeidade e enquanto incluído na história e na sociedade; a grandiosidade consiste em que ele promete o seu reino a seres humanos que vivem corporalmente com outros seres humanos” (p. 21).

Pelo mesmo motivo, Ratzinger critica a noção de redenção segundo a qual a morte de Cristo, Deus e homem, foi necessária porque o pecado era uma injúria infinita que exigia uma reparação infinita – só o sacrifício do próprio Deus pagaria essa injúria. Nessa visão, a redenção “não atua na vida, mas permanece em algum lugar oculto, em um âmbito inabarcável de injúria e bondade infinitas, enquanto a nossa existência se desenvolve nas mesmas tentações e dificuldades, como se toda essa construção não existisse” (p. 23-24).

No mesmo barco

Mas, pergunta o teólogo, “quem se atreve a afirmar que as forças do pecado foram derrotadas?” (p. 24). A nossa vida, com seus limites, fraquezas e tentações, parece contradizer esse anúncio. “Hoje segue sendo advento também para nós”, diz Ratzinger.

“Penso que devemos aceitar isso com simplicidade. O advento é uma realidade também para a Igreja. Deus não dividiu a história em uma metade luminosa e outra obscura. Não dividiu os seres humanos em ‘salvos’ e ‘condenados’. Existe apenas uma única e indivisível história, caracterizada em sua totalidade pela debilidade e miséria do ser humano, e situada sob o amor compassivo de Deus, que a abraça e a acolhe completamente” (p. 24-25), afirma.

“Só existe uma humanidade diante de Deus”, afirma Ratzinger, e “toda ela se encontra nas trevas, mas também está iluminada pela luz de Deus” (p. 25). A fé cristã não nos permite – segundo aquela postura própria de um coração de pedra, que julga o tempo todo – dividir a humanidade entre “bons” e “maus”, “do bem” e “do mal”, “de Deus” e “sem Deus”. E no segundo sermão da série, “A fé como serviço”, ele continua: “Tudo o que acreditamos de Deus e que sabemos do ser humano nos impede de aceitar que fora da Igreja não há salvação” (p. 30).

Por que ser cristão, se a salvação é para todos?

É nesse ponto que costuma emergir no nosso coração um questionamento como esse. Porque “o que nos preocupa não é se os outros podem se salvar e como. Estamos convictos de que Deus pode fazer isso, com ou sem a nossa teoria, com ou sem a nossa sagacidade, e de que ele não precisa que o ajudemos com os nossos pensamentos” (p. 31), afirma Ratzinger.

“O problema que na verdade nos inquieta não é como Deus consegue que os outros se salvem. O que nos preocupa é sim porque devemos ser precisamente nós os que devem praticar a fé cristã; por que se exige de nós que levemos, dia após dia, o peso do dogma e da moral cristãos, quando há tantos outros caminhos que conduzem ao céu e à salvação” (p. 31), provoca o teólogo.

Essas perguntas, porém, se assemelham à dos obreiros da primeira hora, na parábola narrada por Jesus (cf. Mt 10, 1-16). “Mas de onde eles deduziam que é muito mais cômodo estar sem trabalho do que trabalhar? Por que o seu salário só lhes satisfazia com a condição de que o dos outros fosse pior?”, pergunta Ratzinger. É o que acontece conosco quando ficamos ciosos da salvação a nós oferecida e entendemos a vida cristã como um fardo a ser levado porque um dia valerá a pena – e não como luz e alegria.

“Damos por suposto que a falta de trabalho espiritual – uma vida sem fé nem oração – é mais cômoda que o serviço espiritual”, diz. “Pelo visto, queremos ser pagos não apenas com a nossa salvação, mas também e sobretudo com a condenação dos outros – como os obreiros da primeira hora. Isso é muito humano. Mas a parábola do Senhor nos indica claramente que, ao mesmo tempo, é tremendamente anticristão” (p. 32-33).

Para o todo

A pergunta sobre o que é ser cristão não é, portanto, uma pergunta sobre a possibilidade ou não de salvação individual, e sim nos questiona precisamente “por que Deus chamou a nós” e “para que ele veio ao mundo se não o mudou, se não o transformou em um mundo salvo?” (p. 33). Ratzinger lembra que para os Padres da Igreja a ideia de que Cristo veio na “metade dos tempos” não fazia sentido: ele veio no “final dos tempos”, como “meta e sentido de tudo” (p. 34).

A encarnação foi o “instante em que, em um lugar, Deus e o mundo se unificaram. O sentido de toda a história posterior não pode ser outro, no fundo, a não ser atrair todo o mundo a essa unificação, dando-lhe, a partir dela, o sentido pleno de ser um com o seu criador” (p. 35), diz Ratzinger. “A imensa possibilidade do ser humano consiste em seguir essa linha, tomando parte no sentido do universo, ou resistir a ela, levando a sua vida ao absurdo” (p. 35-36).

O cristão é aquele que diz “sim” a esse movimento. E, nesse sentido, “não se é cristão para si mesmo, mas para a totalidade, para os outros, para todos. O movimento de cristianização, que começa no batismo e se deve aperfeiçoar em toda a nossa vida, significa a disposição de realizar na história o que Deus quer de nós” (p. 36): a transubstanciação do mundo em amor, como diz o papa emérito.

Não sabemos bem por que devemos ser nós a fazê-lo, mas sabemos que o mistério da Igreja é como o de Israel: “Deus não tomou a Israel para se preocupar apenas com esse povo, desprezando a todos os outros. Tomou-o para que realizasse um serviço. O mesmo ocorre quando contemplamos Cristo e a Igreja”, diz Ratzinger. “Deus só quer vir aos seres humanos por meio dos seres humanos. Não deixa cair seu olhar verticalmente sobre os particulares como se a fé e a religião devessem se realizar apenas entre ele e o indivíduo. Em vez disso, ele quer edificar o sentido da história através de nosso serviço ao próximo e com o próximo” (p. 37).

“Ser cristão significa, pois, sempre e antes de tudo, libertar-se do egoísmo de quem só vive para si mesmo e incorporar-se na grande orientação fundamental do existir para os outros” (p. 37), afirma Ratzinger. “O movimento fundamental do cristianismo não é outra coisa que o simples movimento fundamental do amor, em que participamos do amor criador do próprio Deus” (p. 38). E conclui: “A misericórdia de Deus, manifestada em Cristo, é suficientemente rica para todos. Tão rica que nos compele a ser instrumentos de sua compaixão e bondade. Para isso somos cristãos” (p. 40).

“Acima de tudo, o amor”

Esse é o título do terceiro sermão. Nele, Ratzinger afirma, a partir da afirmação de Jesus em Mt 22, 35-40 e da parábola do juízo universal (cf. Mt 25, 31-46), que “toda a exigência de Jesus” é o amor. “Quem a cumpre – quem ama – é cristão; tem tudo”, diz. Segundo a parábola, “o juiz do mundo não pergunta as teorias que um homem teve sobre Deus e o mundo. Não pergunta pelos conhecimentos dogmáticos, mas pelo amor” (p. 42-43).

É preciso, segundo Ratzinger, aceitar essas expressões “em toda a sua magnitude e simplicidade, sem condições, como as propôs o Senhor”, sem a tentação de dizer “mas…” (p. 44). Como temos facilidade em tomar ao pé da letra afirmações de Jesus sobre o divórcio, por exemplo, e brandi-las como espadas, mas relativizarmos afirmações como essas! E o amor que Jesus nos pede é como o de Deus, incondicional: “Ele nos ama não porque nós somos bons, mas porque ele é bom” (p. 44).

Então para que a fé?

Se o amor basta, que sentido tem a fé? Para Ratzinger, trata-se de uma pergunta séria, mas, em certo sentido, simplista. Isso porque sabemos que é difícil fazer da nossa vida amor. Se refletimos sobre nossa dificuldade de amar, “a mensagem grandiosa e libertadora da caridade como conteúdo único e suficiente do cristianismo pode resultar também em algo bastante opressivo” (p. 46).

É aí que entra a fé. Ela não apenas preenche esse “déficit de amor que todos temos com a abundância de Jesus Cristo” como “supera a autocomplacência e o autocontentamento de quem se sente satisfeito e diz: eu fiz tudo, não preciso de ajuda” (p. 46-47). A fé nos insere no âmbito do amor como dom, e não apenas como tarefa: ela “significa estender a mão e deixar que nos deem”. Assim, a fé “é, simplesmente, o momento culminante do amor” (p. 47).

Por isso podemos dizer que “tudo o que encontramos no dogma é, em definitivo, simples explanação: explanação da realidade fundamental, decisiva e suficiente do amor a Deus e aos seres humanos”, diz Ratzinger. “E com isso segue sendo válido que os verdadeiros amantes, que são ao mesmo tempo crentes, podem ser chamados cristãos” (p. 47-48).

Recebendo o dom abundante do amor de Deus, todo moralismo cai por terra. “Cristo é o homem que não faz contas, e sim faz o supérfluo. É o amante que não pergunta: até onde posso chegar, permanecendo no terreno do pecado venial, sem ultrapassar a fronteira do pecado mortal? Cristo busca o bem simplesmente, sem cálculos. O simples justo, que só atua no âmbito do correto, é o fariseu; o que não é puramente justo começa a ser cristão” (p. 49).

Amor, fé e esperança

“Isso não significa que o cristão é alguém irrepreensível, que nunca comete faltas. Pelo contrário, sabe que as comete, mas é generoso com Deus e com os seres humanos porque percebe que ele mesmo vive em grande parte da generosidade de Deus e dos demais. Ele possui a generosidade de quem se sente devedor de todos” (p. 49).

E precisamente a consciência de seus limites – e da bondade de Deus – traz para junto da fé e do amor a esperança. “Na noite da pecabilidade humana, toda diferença é insignificante e ninguém pode arrogar-se nada porque todos merecemos a condenação e só somos salvos pela graça” (p. 51), diz o teólogo. Não podemos nos conceber separados dos pecadores. “Nenhum de nós pode dizer: já estou salvo. Neste mundo, a salvação não se dá como algo passado, nem como presente acabado, definitivo, mas apenas em forma de esperança. A luz de Deus brilha neste mundo através do resplendor da esperança, que a sua bondade pôs em nossas vidas” (p. 52).

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Os números de páginas fazem referência à edição espanhola, Ser Cristiano, publicada em 1967 pelas Ediciones Sígueme, de Salamanca. Todos os negritos são nossos e os itálicos são do próprio Ratzinger.

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