Reprodução/Facebook
Reprodução/Facebook| Foto:

“A imagem de um Cristo que se sente confortável dentro da igreja, não perturbado, sem ânsia de vômito, aniquila qualquer interesse real pela sua mensagem”. Esse é, de certa forma, o pano de fundo da reflexão de Antônio Carlos Costa em Azorrague: Os conflitos de Cristo com instituições religiosas. No livro, publicado pela editora Mundo Cristão, o teólogo presbiteriano aponta que Cristo não nos salva apenas da irreligião, mas também – e principalmente – da religião, como atestam as numerosas contendas com os líderes religiosos de sua época narradas no Novo Testamento.

Pastor da Igreja Presbiteriana da Barra, no Rio de Janeiro, Costa é também fundador da ONG Rio de Paz, que desenvolve projetos sociais e humanitários em favelas da capital fluminense e atua no campo da inteligência em segurança pública – a ONG é filiada ao Departamento de Informação Pública da ONU. Hoje, ele é uma das vozes do cristianismo brasileiro que mais sublinham a estreita conexão entre a experiência da salvação em Cristo e as suas consequências políticas e sociais na defesa da dignidade da pessoa humana.

“Era impossível voltar das favelas, dos enterros de vítimas de homicídios, das manifestações de ruas, das prisões, dos hospitais públicos… e ler a Bíblia da mesma forma. O conteúdo ético das minhas pregações mudou perceptivelmente, não a ponto de negar o que ensinava, mas de não conseguir deixar de incluir o que a rua me obrigou a ver”, escreve ele no livro. Costa esteve em Curitiba no fim de novembro para pregar na Igreja Presbiteriana República e conversou com o Acreditamos no Amor. Confira a entrevista:

“Azorrague” é o nome de um instrumento, como um chicote, usado por Jesus para expulsar os vendilhões do templo. Por que você escolheu esse título para o livro?

Essa experiência de Jesus no templo é bem emblemática. Ele viu seres humanos pegando o que de mais lindo existe na vida – o desejo de Deus de se comunicar aos homens – e transformando isso em comércio. Isso enlouqueceu Jesus. Me parece que no meio protestante brasileiro há essa falta de zelo. Nós estamos negociando muita coisa. Estamos permitindo que as igrejas sejam regidas pela mentalidade de mercado. Isso é trágico.

Você considera que essa passagem seja a mais central entre aquelas em que Jesus faz críticas a líderes religiosos?

Não sei se é a principal. Acho que os “ais” de Mateus (23:13-39) são muito fortes. Jesus expressa o seu lamento pelo destino de Israel e de toda a sua liderança religiosa. Faz acusações gravíssimas, chegando ao ponto de dizer: “Vocês não entram no reino dos céus e não deixam os demais entrarem – e quem tem contato com vocês fica pior”. Mas quando ele usa o azorrague no templo, nós nos deparamos com uma imagem de um simbolismo impressionante. Ela mostra que é possível que os seres humanos provoquem um Deus de amor e esse Deus, justamente por amor, ter de manifestar a sua indignação a fim de que os seres humanos não ponham na boca de Deus o que Deus nunca falou. Deus nunca autorizou aquele comércio.

Então, essa instrumentalização da religião é a única ou a principal coisa que realmente provoca, incomoda, ofende o Deus de amor?

Sim. A análise atenta do Antigo Testamento e dos discursos de Cristo revela que as vezes em que Deus manifestou de modo mais contundente a sua indignação foram aquelas nas quais o pobre foi ignorado, a injustiça não foi combatida e o Deus verdadeiro foi transformado em um ídolo pagão, capaz de pedir idiotices de seus adoradores. A corrupção da verdadeira religião – a idolatria que usa o nome do Deus verdadeiro para desviar as pessoas dele – e a falta de compaixão pelo pobre despertam a justa indignação de Deus, e isso toda a Bíblia revela.

Aí vem aquilo que você aborda no livro: Deus nos salva tanto da irreligião quanto da religião.

Tem pessoas perdidas fora da casa do Pai e dentro da casa do Pai. Mas os que estão perdidos do lado de fora o sabem. Não há ninguém mais difícil de se converter do que o religioso cheio de justiça própria que julga estar agradando a Deus pelo fato de ir ao culto ou à missa no domingo.

Como o filho mais velho da parábola (Lc 15:11-32).

Como o filho mais velho: nunca saiu de casa e, contudo, nunca conheceu o amor.

Esse é um tema bastante presente em C. S. Lewis, não? Como em As cartas de um diabo ao seu aprendiz.

Sim. Aliás, esse livro é espetacular. Ele desmascara a hipocrisia religiosa, chegando ao ponto de dizer que as pessoas mais perversas são religiosas. Porque essa perversidade não tem freio. O sujeito julga que presta culto a Deus matando. E o pregador ou pastor transforma os membros da igreja em homens-bomba. É assustador o que as instituições religiosas podem fazer com os seres humanos. Protestantes apoiaram, infelizmente, o regime do apartheid na África do Sul; parte da igreja luterana fechou com Adolf Hitler; parte da igreja dos Estados Unidos se recusou a marchar com Martin Luther King Jr., um pastor batista. A religião tem o poder real de deformar o caráter. Tenho muito medo. Não deixo de ler passagens como os “ais” sem levar em consideração o fato de o sacerdote, nos dias de hoje, sou eu. Os mesmos que mataram Jesus. Jesus não foi morto por pagãos. Ele foi morto por homens que traziam nas mãos a Bíblia – o Antigo Testamento. Isso é assustador.

Isso está relacionado com a sua insistência em deixar claro que quando você se posiciona politicamente, não se trata de alinhamento ideológico, mas de um fruto da sua própria opção de fé.

Exato. Não tenho alternativa. A Bíblia fala sobre o amor. Então quero pensar nos termos da teoria econômica e política que mais fomente o amor. A Bíblia estimula a solidariedade. Então quero modelos de sociedade que sejam solidários. A Bíblia reconhece que o meio pode corromper o homem; o homem cria a cultura e a cultura pode corrompê-lo. Então eu quero ser capaz de reconhecer nas teorias econômicas aquilo que pode servir de obstetra do crime: há modelos de sociedade que extraem de nós o que temos de pior. É por isso que não consigo dissociar o cristianismo da dimensão política do amor. É muito evidente que há uma dimensão política no amor. Um amigo meu pregou certa vez: o que é melhor? Um cristão ser um bom escravocrata ou lutar pela libertação dos escravos? Se a resposta é a segunda, você vai ter que concordar comigo que há uma dimensão política no amor.

Como enxergar então o fato de que tantos cristãos, evangélicos e católicos, sustentem posições políticas tão contrárias ao Evangelho – contrárias ao amor?

A impressão que eu tenho, pelo menos do meio evangélico, é que o Evangelho não é pregado nas igrejas. Moisés está mais presente no púlpito que Jesus Cristo. Prega-se mais moralidade do que o Evangelho. Isso acaba se refletindo no comportamento e até no humor. Ficar anos a fio ouvindo pregações sobre moralidade sem nenhuma perspectiva da graça, que emancipa, que perdoa, que abraça, que consola – isso enlouquece. Você passa a depender de desempenho para se sentir amado por Deus. Se essa é a base da sua relação com Deus, você vai ser muito refratário à crítica e terá uma tendência a criticar as pessoas. A compreensão da mensagem do Evangelho, ao contrário, humilha e produz frutos que só o Evangelho produz. O Evangelho traz doçura para a alma. Esse é o comportamento de quem se viu pecador e carente da misericórdia divina e correu para Cristo em busca de perdão. É impossível que quem tenha passado por essa experiência, com a graça de Deus, não tenha um comportamento misericordioso.

***

Leia também:

***

Deixe sua opinião