O papa Bento XVI ao lado  do pastor luterano Nikolaus Schneider em uma visita à Alemanha em 2011.
O papa Bento XVI ao lado do pastor luterano Nikolaus Schneider em uma visita à Alemanha em 2011.| Foto:

Em 2017, comemoramos os 500 anos da Reforma Protestante – em 31 de outubro de 1517, Martinho Lutero divulgou as suas 95 teses, início simbólico do processo que levou à divisão da Igreja no Ocidente. Em 2016, o papa Francisco participou da inauguração das comemorações em Lund, na Suécia, ao lado do então presidente da Federação Luterana Mundial, o bispo Munib Younan. Tanto entre católicos quanto entre luteranos existe a consciência de que esta celebração é um momento de arrependimento pela divisão sofrida, reconhecimento do legado teológico e espiritual de Lutero e busca de uma renovada comunhão entre os cristãos.

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“Em 2017 deveremos confessar abertamente que, ao ferirmos a unidade da Igreja, nos tornamos culpados diante de Jesus Cristo”, diz a declaração conjunta lançada por ocasião da data, intitulada Do conflito à comunhão. Esse é o 11º documento conjunto lançado pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade de Cristãos e pela Federação Luterana Mundial desde o início oficial do diálogo católico-luterano, em 1967.

Nesse percurso de cinquenta anos, não só o clima entre católicos e luteranos mudou completamente, mas grandes consensos também foram alcançados. Aqui você vai ver sete afirmações em que a postura oficial católica e a luterana estão de acordo – a despeito de grupos marginais que continuam fomentando a divisão entre os cristãos. Confira:

Somos salvos por graça pela fé em Cristo e não por nosso próprio mérito

Este tema fundamental para todo cristão foi o assunto da Declaração conjunta sobre a doutrina da justificação, de 1999. “Confessamos juntos:  somente por graça, na fé na obra salvífica de Cristo, e não por causa de nosso mérito, somos aceitos por Deus e recebemos o Espírito Santo, que nos renova os corações e nos capacita e chama para as boas obras”, diz o texto (n. 15). As boas obras não são uma condição para a justificação, mas a sua consequência (DCDJ 37). O documento esclarece que quando os católicos falam de “mérito”, “querem destacar a responsabilidade do ser humano por seus atos, mas não contestar com isso o caráter de presente das boas obras nem, muito menos, negar que a justificação como tal permanece sendo sempre presente imerecido da graça” (DCDJ 38).

A autoridade da Bíblia não se baseia na autoridade da hierarquia da Igreja

Muitos católicos argumentam contra a ideia de sola scriptura dizendo que a autoridade da Bíblia se baseia na autoridade do magistério católico, já que o cânon bíblico foi definido por papas e concílios. Mas não é assim que a própria Igreja Católica se vê, segundo um documento conjunto de 2006: “A doutrina católica não sustenta […] que a autoridade canônica e vinculante da Escritura tem sua origem na hierarquia da Igreja que torna conhecido o cânon” (ApC 400). Pelo contrário, como afirma o Concílio Vaticano II, na constituição dogmática Dei Verbum, “o magistério não está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço” (n. 10). Aliás, católicos e luteranos reconhecem que, no que toca à relação entre Escritura e Tradição, já não há divisão. “Por isso, no que diz respeito à Escritura e Tradição, Luteranos e Católicos encontram-se num acordo tão amplo que suas ênfases diferentes não requerem por si que se mantenha a divisão das Igrejas. Neste ponto, existe unidade em diversidade reconciliada” (ApC 448).

São João Paulo II em visita a uma igreja luterana de Salzburg, na Áustria, em 1988. São João Paulo II em visita a uma igreja luterana de Salzburg, na Áustria, em 1988.

Cristo está realmente presente na eucaristia

“No sacramento da Ceia do Senhor, Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, está presente total e inteiramente, em corpo e sangue, sob os sinais do pão e do vinho”, confessam unidos luteranos e católicos em um documento conjunto de 1978 sobre a eucaristia. Ao mesmo tempo, ambos os grupos “têm em comum a rejeição de uma compreensão espacial ou natural da presença, assim como rejeitam uma compreensão puramente comemorativa ou figurativa dos sacramentos”. O que Lutero não aceitava era que o conceito filosófico de “transubstanciação” fosse vinculante para todos os cristãos para explicar a transformação eucarística. De fato, o Concílio de Trento reconheceu que uma coisa é crer que o pão e o vinho se convertem no corpo e sangue de Cristo e outra é a explicação de como isso ocorre. Vale lembrar que no artigo O problema da transubstanciação, de 1964, Joseph Ratzinger explicou de tal maneira a conversão do pão e do vinho no corpo e sangue de Jesus que disse que, vista daquela forma, não haveria oposição entre a interpretação católica e a luterana.

A apostolicidade de uma comunidade eclesial não se fundamenta em uma linha sucessória ininterrupta de cada um dos seus ministros

A Igreja Católica reconhece, em documento conjunto de 2006, que quem exerce em outras comunidades cristãs “o encargo de supervisão, que na Igreja Romana é exercido por bispos”, também “assume uma responsabilidade especial pela apostolicidade da doutrina em suas igrejas” e, por isso, essas outras formas de supervisão não podem ser excluídas “do círculo daqueles cujo consenso é, de acordo com a visão católica, sinal da apostolicidade da doutrina” (ApC 291). A fidelidade ao Evangelho testemunhado pelos apóstolos é o primeiro critério de apostolicidade. O mesmo documento lembra ainda que a doutrina católica, ao contrário de certas interpretações rasas que se espalharam em alguns ambientes, considera que “um bispo individual não está na sucessão apostólica por estar numa linha de sucessão historicamente verificável e ininterrupta de imposição das mãos por seus predecessores até um dos apóstolos”, mas sim, que está “em comunhão com toda ordem episcopal que como um todo sucede ao colégio apostólico e sua missão” (ApC 291).

A responsabilidade pela divisão da Igreja é tanto da parte luterana quanto da católica

“Tanto católicos quanto luteranos carregam a culpa que precisa ser reconhecida abertamente na recordação dos eventos de 500 anos atrás” (DCAC 233), diz o documento conjunto de 2015. O texto lembra ainda que já em 1522 o papa Adriano VI reconheceu que autoridades católicas cometeram “abusos e ofensas, pecados e erros” no julgamento de Lutero. O Concílio Vaticano II, no decreto Unitatis Redintegratio, afirmou: “Comunidades não pequenas separaram-se da plena comunhão da Igreja Católica, algumas vezes não sem culpa dos homens de um e doutro lado” (n. 3). Poucos anos depois, em 1970, a Federação Luterana Mundial também pediu perdão pelas “distorções polêmicas” presentes no pensamento dos reformadores. Bento XVI, quando falou em 2011 sobre a comemoração dos 500 anos da Reforma, pediu um lugar importante para a oração “pelo perdão das injustiças recíprocas e pela culpa relativa às divisões”.

Antje Jackelén, arcebispa da Igreja Luterana da Suécia, e o cardeal Anders Arborelius, bispo de Estocolmo. Antje Jackelén, arcebispa da Igreja Luterana da Suécia, e o cardeal Anders Arborelius, bispo de Estocolmo.

A intenção de Martinho Lutero era reformar, não dividir a Igreja

Como muitos grupos católicos de seu tempo, os monges agostinianos estavam especialmente interessados em uma reforma da vida da Igreja de seu tempo. Católicos e luteranos reconhecem juntos que Lutero se inseriu nesse movimento, tendo a intenção de reformar e não de dividir a Igreja (cf. DCAC 29). Os documentos conjuntos são unânimes nesse sentido, bem como a avaliação dos últimos papas. Por trás dos esforços de Lutero, estava a sua busca espiritual pela salvação, diante da qual certas práticas católicas do seu tempo surgiam como obstáculos e distrações. São João Paulo II sublinhou a sua “profunda religiosidade” e a sua “inflamada paixão” (Carta ao cardeal Willebrands, 1983). Bento XVI, por sua vez, afirmou em 2011 que “a pergunta que lhe atravessava o coração e estava por detrás de cada pesquisa teológica e de cada luta interior” era “Como posso ter um Deus misericordioso?” “O fato que esta pergunta tenha sido a força motriz de todo o seu caminho não cessa de maravilhar o meu coração”, disse o papa alemão na ocasião.

Martinho Lutero pode ser tido como “testemunha do Evangelho” e “mestre comum” para católicos e luteranos

No início de 2017, grupos católicos estranharam que o subsídio para a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, publicado pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, chamasse Lutero de “testemunha do Evangelho”. É claro que creditaram essa “heresia” na conta do papa Francisco. Mas um documento conjunto já chamava o reformador assim em 1983 – 34 anos atrás! –, no pontificado de São João Paulo II. O texto diz que, através de Lutero, “pessoas cujas consciências sofreram sob o domínio da lei e dos estatutos humanos e que se sentiram angustiadas por suas falhas e preocupadas com a sua salvação eterna puderam experimentar a promessa libertadora da graça divina, pela fé no evangelho” (MLTJC 9). O documento cita ainda uma frase do cardeal Johannes Willebrands, figura central no diálogo católico-luterano, segundo a qual Lutero “pode ser nosso mestre comum, lembrando-nos que Deus sempre permanece o Senhor e que a nossa resposta mais importante deve ser sempre a confiança absoluta e a adoração de Deus” (MLTJC 26).

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Siglas: MLTJC: “Martinho Lutero, Testemunha de Jesus Cristo” (1983); DCDJ: “Declaração conjunta sobre a doutrina da justificação” (1999); ApC: “A apostolicidade da Igreja” (2006); DCAC: “Do conflito à comunhão” (2015).

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