Leia o documento no qual a AGU posiciona-se contra a liberação do aborto via STF
| Foto:

A Advocacia Geral da União (AGU) enviou ao STF nesta segunda-feira (10/04) sua manifestação a respeito da ação movida pelo PSOL, que pede a liberação do aborto em todo o país até a 12ª semana de gestação. Como previamente anunciado, o órgão seguiu a linha adotada pelo presidente Temer em sua resposta: contrário à legalização do aborto via STF.

Confira abaixo a íntegra da argumentação enviada pela AGU.

 

 

1 – DO OBJETO DA AÇÃO

1. Trata-se de Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, com pedido de liminar, para que seja declarada a não recepção parcial dos arts. 124 e 126, do Código Penal.

2. Eis os dispositivos questionados:

Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena: Detenção, de um a três anos.
Art. 126 – Provocar aborto com consentimento da gestante: Pena: Reclusão, de um a quatro anos.

3. Afirma o autor que as razões jurídicas que moveram a criminalização do aborto pelo Código Penal de 1940 não se sustentam, porque violam os preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da não discriminação da inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, da saúde e do planejamento familiar de mulheres. adolescentes e meninas (Constituição Federal art. 1.°, ines. I e 11; art. 3.°. inc. IV; art. 5.°, caput e ines. I e 111; art. 6.°, caput; art. 196 e art. 226, § 7.°).

4. Aduz que os precedentes estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 3510, na ADPF 54 e no HC 124.306 afirmam a impossibilidade de imputar o estatuto de pessoa constitucional ao embrião ou feto, sendo a estes reconhecido apenas o valor intrínseco de pertencimento à espécie humana, por isso, a proteção infraconstitucional gradual na gestação.

5. Alega que “ter um filho é evento central na vida das mulheres; portanto, as condições de que dispõem para decidir se, como ou quando fazê-lo concretizam os princípios fundamentais da pessoa humana e da cidadania, na medida que confonnam a capacidade delas de se autodeterminar, de forma a realizar o projeto de vida”.

6. Expõe que “ainda que se imagine ser um objetivo constitucionalmente legítimo a proteção ao valor intrínseco do humano ao embrião ou feto, a máxima da proporcionalidade demonstra que a criminalização do aborto não é medida adequada nem necessária para alcançar tal finalidade, já que não coíbe a prática nem promove meios eficazes de prevenção da gravidez não planejada e, consequentemente, do aborto, que exigem educação sexual integral, acesso a métodos contraceptivos adequados, combate à violência sexual e fortalecimento da igualdade de gênero”. Assim, “a criminalização do aborto não protege o direito à vida, apenas subjuga mulheres, em particular as jovens, negras e indígenas, pobres e nordestinas”.

7. Apresenta, ainda, diversos exemplos de direito comparado, para concluir que os marcos legais internacionais de interrupção da gestação por prazos “são coerentes tanto com experiências das mulheres quanto com recomendações 2 médicas”, dessa feita, seria viável a interpretação constitucional para descriminalizar a conduta do aborto quando interrompida a gravidez durante o primeiro trimestre de gestação.

8. Nesse sentido, pleiteia a concessão de medida liminar e, no mérito, a procedência da ação para que, com eficácia geral e efeito vinculante, seja declarada a não recepção parcial dos arts. 124 e 126 do CP, excluindo do seu âmbito de incidência a interrupção da gestação induzida e voluntária nas primeiras 12 semanas de gestação, de acordo com a autonomia das mulheres, “sem necessidade de qualquer forma de permissão específica do Estado”, garantindo “aos profissionais de saúde o direito de realizar o procedimento”.

9. Os autos foram distribuídos para a Ministra Rosa Weber, que concedeu o prazo de cinco dias para a Presidência da República apresentar manifestação.

 

II – DO “DESACORDO MORAL RAZOÁVEL”, DA NECESSIDADE DE MODIFICAÇÃO LEGAL PELO PODER COMPETENTE

10. Não restam dúvidas de que o tema vida e seus correlatos – como aborto e eutanásia, por exemplo – é de extrema relevância para toda a sociedade. Desse modo, observa-se na presente ação uma questão sensível cujos argumentos antagônicos são igualmente relevantes.

11. Tem-se posto, então, um “desacordo moral razoável” I , visto não haver um consenso entre as concepções morais, filosóficas e, até, religiosas dos indivíduos da sociedade ao se tratar do tema em debate.

12. Nesse contexto, quando ocorre esse desacordo e o mesmo é enfrentado pelo Estado democrático, interessa saber qual decisão será tomada, uma vez que vinculará a todos, independentemente de credo, raça, cor, sexo, origem ou convicções políticas.

13. Assim sendo, quando se discutem temas essenciais ao funcionamento de um regime democrático, como o dos direitos fundamentais – no caso dos autos, o direito à vida – tem-se que esses não podem ser subtraídos do Poder competente que representa toda a sociedade, qual seja, o Poder Legislativo.

14. O tema da concepção e da proteção normativa do feto ou do nascituro recebeu um sentido jurídico-normativo específico e, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, três são as hipóteses em que se permite o aborto, quais sejam. (i) quando a gravidez é resultante de estupro (art. 128, L CP), (ii) quando houver risco de morte da gestante (art. 128, 11, CP) e (iii) nas hipóteses de feto anencefálico, segundo decidido pela Suprema Corte nos autos da ADPF 54.

15. Portanto, eventual deferimento do pedido desta ADPF, no sentido da não recepção parcial dos arts. 124 e 126, do Código Penal, traria como consequência inafastável a introdução de mais uma excludente de ilicitude ao referido rol de possibilidades.

16. Nesse sentido, a eventual modificação do padrão valorativo presente na Constituição Federal acerca da matéria e a regulamentação normativa das condutas proibitivas merece ser realizada, precipuamente, pelo Poder Legislativo.

17. De tal modo, ao trazer a questão para o debate no âmbito do Poder Legislativo, resta respeitado um dos pilares da democracia moderna, qual seja o pluralismo político, no que se garante a legitimidade da decisão majoritária, ao mesmo tempo em que se resguarda os direitos das minorias.

 

 

III DA DISTINÇÃO ENTRE FETO ANENCÉFALO E A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO, DA INAPLICABILIDADE POR ANALOGIA DA ADPF N. 54

18. Como sabido, o Supremo Tribunal Federal nos autos da ADPF n.o 54 foi provocado a pronunciar-se acerca da polêmica temática do aborto de fetos anencéfalos.

19. No julgamento do caso, a Corte, por maioria de votos, decidiu ser inconstitucional a interpretação restritiva do Código Penal que criminalizava a interrupção da gravidez quando diagnosticada a anencefalia – má-formação que inviabiliza a vida extrauterina.

20. Todavia, não se pode confundir a situação dos fetos anencefálicos com a hipótese de interrupção da gravidez nas primeiras 12 (doze) semanas de gestação, como requer o autor.

21. Ora, a anencefalia consiste em uma má formação rara, caracterizada pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana, proveniente de defeito de fechamento do tubo neural nas primeiras semanas da formação embrionária. Trata-se de patologia letal, havendo curtíssima – ou quase nenhuma – expectativa de vida desses bebês, o que difere, completamente, da interrupção de uma gravidez normal e saudável ainda que em seu início.

22. Em seu voto, o Ministro Marco Aurélio repisou que a incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobreviver ao parto, o será por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a qualquer custo.

23. Sustentou, ainda, o Ministro Marco Aurélio que na ADPF 54 não se discute a descriminalização do aborto, já que existe uma clara distinção entre este e a antecipação de parto no caso de anencefalia, cite-se:

Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível. A anencefalia, que pressupõe a ausência parcial ou total do cérebro. é doença congênita letal, para a qual não há cura e tampouco possibilidade de desenvolvimento da massa encefálica em momento posterior. O anencéfalo jamais se tomará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura . (Grifou-se).

24. Portanto, constata-se que se está a tratar de situações diversas. sendo incabível qualquer interpretação analógica com o que decidido na ADPF n.O 54.

 

 

IV – DA INAPLICABILIDADE DO QUE DECIDIDO NO HABEAS CORPUS 124.306

25. Quando do julgamento do HC n,o 124.306, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal analisava a legalidade dos requisitos que determinaram a prisão preventiva de dois médicos que foram presos em flagrante por, supostamente, estarem realizando um aborto com o consentimento da gestante (art. 126, do CP).

26. Ao analisar o writ, entendeu a Primeira Turma tão somente pelo afastamento da prisão preventiva dos pacientes, assim, é que a discussão incidental sobre a criminalização ou não do aborto nos três primeiros meses de gestação foi apenas para se analisar se seria cabível ou não a manutenção da prisão.

 

 

V – DA ADI 3510. LEI DE BIOSEGURANÇA. INCOMPATIBILIDADE COM A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO

27. Nos autos da ADI 3510, o Plenário da Suprema Corte entendeu que não existe pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana. O embrião referido na Lei de Biossegurança (“in vitro” apenas) não é uma vida a caminho de outra vida virginalmente nova, porquanto lhe faltam possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas, sem as quais o ser humano não tem factibilidade como projeto de vida autônoma e irrepetível.

 

28. Dessa forma, diferentemente do que argumenta o autor, não possui a presente ADPF qualquer relação com a ADI 3510, uma vez que restou expresso no acórdão da ação direta de inconstitucionalidade que naquele julgamento não se tratava da interrupção da gravidez humana, cite-se:

IV – AS PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO NÃO CARACTERIZAM ABORTO. MATÉRIA ESTRANHA À PRESENTE AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. É constitucional a proposição de que toda gestação humana principia com um embrião igualmente humano, claro, mas nem todo embrião humano desencadeia uma gestação igualmente humana, em se tratando de experimento “in vitra”. Situação em que deixam de coincidir concepção e nascituro, pelo menos enquanto o ovócito (óvulo já fecundado) não for introduzido no colo do útero feminino. O modo de irromper em laboratório e permanecer confinado “in vitro” é, para o embrião, insuscetível de progressão reprodutiva. Isto sem prejuízo do reconhecimento de que o zigoto assim extracorporalmente produzido e também extra-corporalmente cultivado e armazenado é entidade embrionária do ser humano. Não, porém, ser humano em estado de embrião. A Lei de Biossegurança não veicula autorização para extirpar do corpo feminino esse ou aquele embrião. Eliminar ou desentranhar esse ou aquele zigoto a caminho do endométrio, ou nele .já fixado. Não se cuida de interromper gravidez humana, pois dela aqui não se pode cogitar. A “controvérsia constitucional em exame não guarda qualquer vinculação com o problema do aborto.” (AOI n.o 3510, Relator: Ministro Ayres Britto, Julgamento: 29/05/2008, Publicação: 28/05/2010) (Grifou-se).

VI – DA IMPOSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE LIMINAR, DO PERICULUM IN MORA INVERSO

 

29. No presente caso, tem-se que as normas questionadas, contidas na parte especial do Código Penal de 1940, foram recepcionadas pela Constituição Federal de 1988 e estão em vigor com força de lei ordinária.

30. Portanto, observa-se que diante do decurso de prazo existente (1988 – dias atuais). o questionamento da constitucionalidade das normas deve ser analisado sob um prisma cauteloso de adequação social, e não por meio do caráter precário de concessão de medida cautelar. 31. Assim, a complexidade do tema exigiria um amplo debate, inclusive com a participação de amici curiae e a realização de audiências públicas, tal como realizado na ADPF 54. 32. De fato, a matéria em análise desagua em questionamentos múltiplos, de natureza objetiva, sendo correto acionar-se o disposto no artigo 6.°, § 1.°, da Lei n.o 9.882/99, cite-se:

Art. 6.° § 1.° Se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a arguição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria.

33. Registre-se, ainda, que no julgamento da ADPF 54 – trazida como parâmetro de julgamento pelo autor – o Pleno da Suprema Corte afastou a liminar concedida pelo relator ao argumento de que seria necessário o aparelhamento adequado do processo para se proferir uma decisão.

34. Nas palavras do Ministro Cezar Pelus0 :

Sr. Presidente, em segundo lugar, toda liminar é, por definição, seja ela chamada de cautelar ou de antecipação de tutela, medida revogável a qualquer tempo, por definição. Isto é, nada impediria ao Tribunal que, ainda quando já tivesse referendado a liminar. viesse a revogá-la diante de circunstâncias supervenientes, que não vêm ao caso (não é de circunstância superveniente nesses termos que se trata). A meu ver, portanto, há uma razoável questão jurídica proposta ao Tribunal, sem prejudicar o direito do eminente Ministro Carlos Britto manifestar-se sobre a admissibilidade da ação. Não há, penso eu, nenhum impedimento em que o Tribunal. como já fez de modo inverso, em várias circunstâncias análogas em que os feitos foram adiados, conceda uma liminar em sentido contrário, mas o procedimento lógico-jurídico é o mesmo, o que é diferente é o resultado. Nem se pode pré-excluir que o caso seja de um resultado extremamente diferente, porque, na verdade, no fundo o que se está em jogo é, sem avançar nenhum juízo sobre o mérito do pedido, a possibilidade teórica de que se contraponham dois grandes valores jurídicos tutelados pela Constituição. A grande pergunta é: há argumentos suficientes para se optar por um deles, de modo mais ou menos indefinido, em detrimento do outro valor, que parece ter o mesmo grau de dignidade jurídico-constitucional, ou não há? É disso que trata a questão proposta pelo eminente Ministro Eros Grau, de indagar ao Tribunal se considera conveniente, ou não, nesta oportunidade em que se vai prolongar o juízo sobre a admissibilidade da ação, uma medida cuja eficácia aparentemente protege um valor constitucional, mas prejudica outro valor constitucional, e cujo cotejo é o próprio objeto último da causa. (Grifou-se).

 

35. Importante registrar que da distribuição do processo até o trânsito em julgado da decisão de mérito decorreram 9 (nove) anos, com participação ativa da sociedade civil. A necessidade desse debate deve ser levada em consideração para que não se conceda a cautelar pleiteada.

36. Dessa maneira, os argumentos veiculados pelo autor para fundamentar seu pedido de medida cautelar carecem de plausibilidade, o que inviabiliza o seu deferimento.

VIII – CONCLUSÃO 37. São esses, Sr. Consultor-Geral da União, os elementos e considerações que. a título de infonnações, sugiro sejam apresentados ao Supremo Tribunal Federal.

 

Brasília, 10 de abril de 2017.

 

 

 

 

RAQUEL BARBOSA DE ALBUQUERQUE

ADVOGADA DA UNIÃO

 

 

CÉLIA MARIA CAVALCANTI RIBEIRO

CONSULTORA DA UNIÃO

Deixe sua opinião