Francisco lava os pés de refugiados na Quinta-Feira Santa de 2016, em campo de refugiados italiano. Foto: Osservatore Romano
Francisco lava os pés de refugiados na Quinta-Feira Santa de 2016, em campo de refugiados italiano. Foto: Osservatore Romano| Foto:

Quem ouve o papa Francisco falar sobre a crise dos refugiados costuma pensar que o tema foi introduzido no discurso da Igreja Católica pelo pontífice argentino. Mas não é bem assim. Ontem mesmo (21/08), por exemplo, a Santa Sé publicou a mensagem de Francisco para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, uma data que em janeiro de 2018 será celebrada pela Igreja nada menos que pela 104ª vez.

A data foi instituída pelo papa Pio X em 1914 e desde 1996 cita em seu nome oficial, além dos migrantes, os refugiados. Uma olhada nas notas de rodapé da mensagem deste ano também já diz bastante coisa: das 16 citações, cinco são de Bento XVI, duas são de João Paulo II e Paulo VI e Pio XII contam com uma cada um. Apenas duas vezes Francisco faz referência a textos de seu próprio punho.

O bispo que dorme no escritório porque deixou o seu apartamento para refugiados

A Cúria Romana dispõe de um organismo próprio para tratar do assunto há mais de cem anos: desde 1912, com o Ofício Especial para a Imigração instituído por Pio X. Antes, era a Congregação para a Propagação da Fé que cuidava dos migrantes. A repartição ganhou grande impulso de Pio XII, que em 1952 publicou a constituição apostólica Exsul Familia, primeiro documento eclesial dedicado especialmente ao tema.

Em 1970, Paulo VI deu mais autonomia ao órgão, tornando-o a Pontifícia Comissão para o Cuidado Espiritual dos Migrantes e Itinerantes, renomeado em 1988 como Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes. Finalmente, no início de 2017, o organismo se tornou a Seção Migrantes e Refugiados, dentro do novo Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. Aliás, em um movimento inédito, o papa Francisco nomeou-se a si mesmo como responsável direto por essa seção.

O que dizem os papas?

E o que tem dito a Igreja sobre o assunto em todos esses anos? Vamos ver alguns pontos das mensagens redigidas pelos papas para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado:

Sobre a integração cultural dos migrantes nos países que os recebem, João Paulo II disse em 2004 que o caminho não é nem “uma assimilação que leva a suprimir ou a esquecer a própria identidade cultural” nem “uma simples justaposição de grupos de migrantes e de autóctones”, mas “uma fecundação recíproca das culturas”.

Em 1995, detendo-se sobre o tema dos imigrantes ilegais, João Paulo II disse que “qualquer que seja a sua posição jurídica perante o ordenamento do Estado”, é necessário lhes assegurar “os meios de subsistência necessários” e ajudá-los “a executar as práticas administrativas, a fim de obter a autorização de permanência”. “Enquanto sacramento de unidade, e portanto sinal e força agregadora de todo o gênero humano, a Igreja é o lugar onde também os imigrantes ilegais são reconhecidos e acolhidos como irmãos”, escreveu o pontífice.

“Acolher os refugiados e dar-lhes hospitalidade é para todos um gesto obrigatório de solidariedade humana” (Bento XVI)

Em 2002, quando o tema da mensagem foi o diálogo inter-religioso e os migrantes, João Paulo II afirmou: “O cristão, deixando-se orientar pelo amor ao seu Mestre divino, que com a morte na cruz redimiu todos os homens, abre também ele os braços e o coração a todos. É a cultura do respeito e da solidariedade que deve embeber a sua alma, sobretudo quando se encontra em ambientes pluriculturais e multirreligiosos”.

Bento XVI, em 2010, disse sem rodeios que “todos pertencem a uma só família, migrantes e populações locais que os recebem, e todos têm o mesmo direito de usufruir dos bens da terra, cujo destino é universal”. Escreveu ainda que “acolher os refugiados e dar-lhes hospitalidade é para todos um gesto obrigatório de solidariedade humana, para que eles não se sintam isolados por causa da intolerância e do desinteresse”.

Em 2012, o pontífice alemão disse ainda que se deve “evitar o risco do mero assistencialismo na sua relação com os migrantes e refugiados, procurando favorecer a autêntica integração numa sociedade onde todos sejam membros ativos e responsáveis pelo bem-estar do outro, prestando generosamente as suas contribuições originais, com pleno direito de cidadania e participação nos mesmos direitos e deveres”.

Na mesma mensagem, falando sobre os imigrantes ilegais, Bento XVI se disse preocupado sobretudo com o tráfico de pessoas e afirmou que a “gestão regulamentada dos fluxos migratórios” não pode se reduzir “ao encerramento hermético das fronteiras, ao agravamento das sanções contra os ilegais e à adoção de medidas que desencorajem novos ingressos”.

Diante dessa pequena amostra do ensinamento dos predecessores de Francisco sobre os migrantes e refugiados, não sobram dúvidas de que a postura do pontífice argentino diante desse tema é sim mais enfática – dada a situação atual –, mas não é uma novidade. Quando Francisco desembarcou em Lampedusa em sua primeira visita pastoral, em 2013, para denunciar a “globalização da indiferença”, estava dando novos e decisivos passos em um caminho já traçado por seus predecessores há décadas.

Fundamentos

Três passagens bíblicas aparecem com frequência nos textos dos papas sobre esse tema, fundamentando a sua preocupação. A primeira está na origem do próprio conceito de “próximo”: a experiência de Israel no Egito. “O estrangeiro que reside convosco será tratado como um dos vossos compatriotas e tu o amarás como a ti mesmo, porque tu mesmo foste estrangeiro na terra do Egito”, diz Levítico 19, 34.

A outra é a parábola do juízo final (Mt 25, 31-46), em que Jesus diz claramente: “Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo, porque (…) eu era estrangeiro, e me recebestes”. O terceiro fato bíblico é que o próprio Jesus, com José e Maria, foi refugiado no Egito, fugindo de Herodes.

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