São Bento em detalhe de afresco de Fra Angelico no Convento de São Marcos, em Florença, realizado em 1441.
São Bento em detalhe de afresco de Fra Angelico no Convento de São Marcos, em Florença, realizado em 1441.| Foto: Domínio público

Retomamos aqui a série de espiritualidade publicada ao longo de 2020, iniciando a publicação de doze novos textos sobre figuras da história da mística. 

Bento de Núrsia é uma figura enorme e, ao mesmo tempo, discreta. Seu título de patrono da Europa, conferido por Paulo VI em 1964, reflete a profunda influência que esse abade, tido como o patriarca dos monges

cristãos do Ocidente, teve sobre o continente europeu. Boa parte da identidade da Europa está enraizada nos mosteiros que se espalharam pelo continente, vivendo sob a regra escrita por São Bento.

Quando queremos, porém, nos aproximar do rosto de Bento, a sua discrição pode tornar essa empreitada difícil. Gregório Magno escreveu sobre a vida de Bento cerca de cinquenta anos após a sua morte, mas o único escrito que temos do próprio abade é a regra que escreveu para seus mosteiros — e que, em certa medida, é como uma nova versão de uma regra de autoria anônima que já circulava entre os mosteiros de seu tempo.

Mas essa discrição talvez não seja um empecilho. Pelo contrário, ela revela o rosto de um bom monge, que deseja que a sua vida esteja, como diz Paulo, “escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,3). Ainda que sóbrio, ou talvez precisamente porque sóbrio, o texto da regra delineia os traços de seu autor e o percurso de seu próprio caminho espiritual.

É, de fato, um caminho que começa com a humildade, ou melhor, que é todo feito de humildade, descrita pela regra como uma escada com doze degraus. É o caminho do seguimento de Cristo, que percorreu a estrada do abaixamento e que, assim, na vulnerabilidade e não na autoafirmação, manifestou o amor de Deus.

Uma das sentenças mais conhecidas da sua regra explicita o que é fundamental para o monge: “Nada antepor ao amor de Cristo”. É o amor derramado sobre nós por Cristo que, se acolhido verdadeiramente, nos configura ao mesmo amor. Daí que faz parte da “arte espiritual”, entre outros traços, “não satisfazer a ira”, “não reservar tempo para a cólera”, “não retribuir o mal com o mal”, “não ser murmurador”, “consolar o que sofre” e “não odiar a ninguém”.

O mosteiro, enquanto espaço de interioridade e estabilidade, é a “oficina” em que se exercita essa arte, é a “escola do serviço do Senhor”. É o espaço do encontro com as profundezas de si mesmo e, aí, com Deus. Por isso, se nada deve se antepor ao amor de Cristo, o caminho para tanto é expresso com igual clareza: “Nada se anteponha ao ofício divino”, isto é, à liturgia das horas, ao louvor que a comunidade, em Cristo, eleva ao Pai.

Assim, o monge que percorre a escada da humildade de Cristo alcança “aquela caridade de Deus que, quando perfeita, afasta o temor”. Nessa caridade, o monge passa a viver a vida em Cristo, viver a comunhão e o serviço, “sem nenhum labor, como que naturalmente”. Para Bento de Núrsia, o “caminho estreito” do Evangelho só é estreito no início: depois, “dilata-se o coração e com inenarrável doçura de amor corre-se pelo caminho dos mandamentos de Deus”.

Aqui a vida cristã expressa o coração da sua identidade. É um caminho de pacificação e reconciliação interior. Há uma percepção de equilíbrio na vida monástica, que transcorre entre o trabalho manual, a leitura da Palavra e a oração comunitária. No entanto, não se trata de uma alternância entre extremos, e sim de um percurso de unidade de si mesmo, um caminho em que encontramos a nossa integridade diante de Deus.

Com isso, a oração se torna contínua: reza-se no coro, mas também na horta e na padaria. E o trabalho, entendido como expressão criativa de si mesmo e como serviço ao outro, também se torna contínuo: há um labor na leitura da Palavra e na celebração litúrgica — chamada, aliás, de opus Dei, “trabalho de Deus”. Ora-se como se trabalha e trabalha-se como se ora.

O lema que se vê inscrito pelos mosteiros ou na saudação dos monges, “pax” (“paz”), remete a essa unidade, a essa reconciliação interior que permite a reconciliação exterior — permite que se viva como comunidade. Assim, os detalhes que compõem o dia a dia não se tornam dispersão: há um fio que os costura em uma unidade, que é a presença discreta de Cristo em nós, a fim de que, como diz Bento, “em tudo seja Deus glorificado”.

Bento de Núrsia (c. 480-547) foi um abade da Península Itálica, considerado um dos pais do monaquismo cristão no Ocidente.

Felipe Koller é mestre e doutorando em Teologia pela PUCPR e professor visitante da Faculdade São Basílio Magno e da Católica de Santa Catarina.

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