Evágrio Pôntico ensinava que a pacificação dos movimentos interiores é fundamental para a vida contemplativa.
Evágrio Pôntico ensinava que a pacificação dos movimentos interiores é fundamental para a vida contemplativa.| Foto: Domínio público

Homem de formação erudita, considerado muito estudado, Evágrio Pôntico precisou passar por uma grande transformação ao decidir se retirar no deserto, como numerosos outros cristãos do século IV. Ali, ele aprendeu que o conhecimento de Deus não está nos livros, mas na contemplação. Por isso, não hesitou em dizer: “Se você é teólogo, você ora verdadeiramente. Se você ora verdadeiramente, é teólogo”. Tendo percorrido esse caminho, Evágrio se tornou um mestre e pai para outros monges, e legou em seus escritos a sua doutrina espiritual.

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“O cristianismo é a doutrina de Cristo, nosso Salvador, composta pela prática, a contemplação da natureza e a teologia”, compreendida como conhecimento imediato de Deus, por experiência contemplativa. “O objetivo do viver ascético” – isto é, da prática – “é purificar o intelecto e torná-lo impassível; o da contemplação da natureza é revelar a verdade oculta em todas as coisas; mas remover o intelecto de todas as coisas materiais e orientá-lo em direção da Causa Primeira é um dom da contemplação de Deus”, escreve Evágrio.

Não é por moralismo que Evágrio alerta para a gula, a impureza, a avareza, a tristeza, a ira, a acídia, a vanglória e a soberba. É que essas são tendências – Evágrio as chama “pensamentos passionais” – que se manifestam em nós que impedem a verdadeira contemplação. “Se você deseja orar, não faça nada contrário à oração, para que Deus, aproximando-se, caminhe junto contigo”, aconselha. 

Essas tendências, de fato, nos afastam de quem somos verdadeiramente. Necessitamos apaziguá-las, alcançando o que Evágrio chama de apatheia, que não é a ausência de sentimentos, como na leitura estoica do conceito, mas uma reconciliação interior: é “a saúde da alma”, descreve ele. Daí a importância da ascese: “Que eles todos” – os pensamentos passionais – “perturbem a alma ou não perturbem, isso não depende de nós. Que persistam ou não persistam, que movam as paixões ou não movam, isso depende de nós”, diz. 

A ascese, mantendo-nos fora do domínio desses pensamentos, purifica o coração. Daí Evágrio dizer que a agape é a filha da apatheia – e é nesse amor que acontece a contemplação. A pessoa que ingressa nesse estado está pronta para experimentar a vida contemplativa. “O estado de oração é uma disposição imperturbável. Ele arrebata ao ápice do inteligível aquele que ama a sabedoria e o intelecto espiritual através do mais elevado amor”, escreve Evágrio.

Segundo ele, a vida contemplativa é composta de dois níveis: primeiro, a contemplação das coisas criadas, o que inclui um conhecimento mais profundo das escrituras; e, em última instância, o conhecimento de Deus, que não é como o conhecimento de um objeto: esse próprio conhecimento é a Trindade Santa. “Assim como a luz, que nos possibilita ver todas as coisas, não precisa de outra luz para ser vista, do mesmo modo Deus, em quem vemos todas as coisas, não tem necessidade de uma luz em que possamos vê-lo, porque ele próprio é luz por essência”, afirma Evágrio.

É quando o intelecto – aqui não se trata da mera faculdade da razão, mas do centro espiritual do ser humano –, em sua simplicidade e nudez, depondo os conceitos e orientado ao amor, participa do divino. Esse intelecto, na verdade, é a imagem de Deus em nós: entrando em contato com nossa interioridade reconciliada, vemos a Deus como num espelho. Essa participação na vida da Trindade foi propiciada pela encarnação de Cristo, “o único que tem em si a Unidade”. Assumindo a carne da nossa humanidade, ele tornou o nosso retorno a Deus possível – e esse retorno não é individual, mas em última instância será retorno de todas as coisas à sua origem. 

“Quando os intelectos fluem de volta para ele como torrentes para o mar, ele os transforma totalmente em sua própria natureza, cor e sabor. Eles não mais serão muitos, mas um em sua infinita e inseparável unidade, porque estão unidos e conectados com ele. E assim como na fusão dos rios com o mar não encontramos nenhuma adição em sua natureza ou variação em sua cor ou sabor, também na fusão dos intelectos com o Pai não acontece nenhuma dualidade de natureza nem qualquer quaternidade de pessoas”, escreve Evágrio.

Por isso, o retiro que o monge assume não significa isolamento: o monge é “alguém separado de tudo e unido a tudo”, diz Evágrio. Se um cristão se retira para a própria solidão, percorrendo o caminho da contemplação, é para reencontrar novamente tudo o que existe na unidade da Trindade Santa. Ele se separa para se unir, se afasta para encontrar. Cristo, a unidade de todas as coisas, nos recolhe todos em si e nos mergulha no oceano da Trindade, “Cristo é o nosso amor. Ele une o nosso entendimento ao do nosso próximo na apatheia, através do conhecimento verdadeiro da Trindade Santa”.

É claro que a apatheia não precisa ser uma obra completada para que finalmente se possa orar. Ela não chega a ser uma conquista definitiva. Assim, “o Espírito Santo, simpatizando com nossa fraqueza, ainda que estejamos impuros, visita-nos. E, se encontra nosso intelecto, no amor à verdade, orando a ele, pousa ali e destrói toda a falange dos pensamentos passionais e conceitos que o cerca, impelindo-o à obra da oração espiritual”, escreve Evágrio. A oração, afinal, é dom, e também a pacificação interior não pode ser vista de outro modo.

Evágrio Pôntico (345-399) foi um anacoreta cristão que viveu no deserto da Nítria, no Egito. Nascido no Ponto, passou pelas igrejas de Cesareia da Capadócia e de Constantinopla, como leitor, diácono e arcediago, antes de se retirar para a vida eremítica. 

Felipe Koller é mestre e doutorando em Teologia pela PUCPR e professor visitante da Faculdade de São Basílio Magno e da Católica de Santa Catarina.

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