A humildade evoca o barro, a fragilidade, a pobreza, mas também a concretude do real, a nudez do solo, a verdade do pé no chão
Detalhe de “Caipira picando fumo”, de Almeida Júnior (1893).| Foto: Domínio público

Uma das passagens mais interessantes de O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, é a visita do protagonista a alguns planetas antes de chegar à Terra. Em um deles, ele encontrou um rei que considerava qualquer coisa que aparecesse como seu súdito, fazendo com que cada gesto ao seu redor significasse um ato de obediência a alguma ordem ou proibição sua. Em outro, topou com um “vaidoso”, um homem que via qualquer outro como seu admirador. Em outro planeta ainda, vivia um empresário, que acreditava possuir todas as estrelas apenas pelo fato de contabilizá-las – e apenas em vista do simples fato de se declarar seu dono.

Visita após visita, uma certeza se enraizava cada vez mais no coração do principezinho: as pessoas grandes são decididamente muito estranhas. No planeta seguinte, porém, havia apenas um lampião e um acendedor de lampiões, que o acendia e o apagava a cada minuto – essa era a duração da rotação do planetinha em torno de seu próprio eixo. O principezinho achou graça, mas fez uma constatação séria: “É o único que não me parece ridículo. Talvez porque é o único que se ocupa de outra coisa que não seja ele próprio”.

Temos dificuldade de pensar o que significa a humildade, ao menos quando tentamos raciocinar de modo abstrato, em vez de simplesmente reconhecer a humildade onde a encontrarmos. “Humildade não quer dizer ser uma pessoa lânguida, fraca. Isso não é humildade, é teatro!”, como disse o papa Francisco. O humilde, em latim, é humilis, aquele que é semelhante ao húmus, à terra. A imagem da terra evoca o barro, a fragilidade, a pobreza, mas também – e justamente por isso – a concretude do real, a nudez do solo, a verdade do pé no chão.

Humildade e verdade

“Há pessoas que até tomam distância da humildade porque a ligam a uma timidez excessiva ou a ser submisso a alguém – e, portanto, a uma situação de inferioridade”, explica a psicóloga Ana Caroline Bonato da Cruz. “O que a psicologia entende é que a humildade está relacionada a que eu, como ser humano, tenha uma perspectiva real sobre as minhas habilidades e capacidades, entenda quais são os meus limites, identifique quando cometo erros e esteja disposto a contribuir com as outras pessoas sem ganhar em cima disso e sem a necessidade de ter holofotes”.

O ensaísta inglês G. K. Chesterton deu uma definição interessante dessa virtude: a humildade consiste em “dar-se conta de que, para o universo, eu não sou um ‘eu’, mas apenas um ‘ele’”. Em outras palavras, ser humilde significa romper com a ilusão de que tudo gira em torno de mim mesmo – como faziam o rei, o vaidoso e o empresário da obra de Saint-Exupéry, que só eram capazes de enxergar súditos, admiradores e posses. Não enxergavam o real. Por isso, Teresa d’Ávila entendia que “a humildade é andar na verdade”. 

“Na verdade, a humildade é a capacidade de aceitar com suavidade nossa natureza finita, limitada e inconsciente. Nesse sentido, não se trata de autodepreciação, mas de puro e simples respeito à verdade dos fatos”, explica Matheus Cedric, professor de Filosofia e Ensino Religioso. “Quando tenho dificuldade em olhar nos olhos dos meus próprios erros e limitações e aceitá-los como parte também do que eu sou, falta-me humildade”.

No século XII, o abade Bernardo de Claraval chamou a humildade de um prato amargo – já que encarar a minha própria verdade, deixando cair tantas máscaras e maquiagens, pode ser significativamente doloroso –, mas que é imediatamente seguido pelo prato da caridade, “um consolo com doçura”, “um alívio”: conhecer o barro de que sou feito, afinal, me impulsiona a acolher a mim mesmo como sou, sem fechar os olhos para as minhas fragilidades, e a não me fechar àquele que é semelhante a mim, ou seja, cada ser humano.

A virtude invisível

“Não imagine que, se você encontrar um homem realmente humilde, ele será o que a maioria das pessoas chama de ‘humilde’ hoje em dia: ele não será uma espécie de pessoa afetada e subserviente, sempre pronta a dizer que, é claro, ela não é ninguém”, escreveu C. S. Lewis. “Provavelmente, tudo o que você achará dele é que parece um sujeito alegre e inteligente, que se interessou de verdade pelo que você lhe disse. Ele não pensará em humildade: ele sequer pensará em si mesmo”. Para Lutero, isso era claro: “A verdadeira humildade nunca sabe que é humilde”, escreveu o reformador. “Com a humildade esquecemos de ficar observando a nós mesmos”. Talvez por isso Mahatma Gandhi tenha dito que o amor pode ser cultivado, mas a humildade não – ela não se presta a ser praticada conscientemente.

Se o tentarmos, aparece o que chamamos de falsa humildade. Ana Caroline alerta para duas formas pelas quais ela se manifesta. “Uma delas é a pessoa que não quer ser humilde, mas quer que os outros entendam que ela é humilde. Isso quebra a própria perspectiva da humildade”, diz a psicóloga. “A outra é a pessoa que busca a humildade de uma forma tão obcecada por valorizar apenas os outros que acaba perdendo a si mesma”. Teresa d’Ávila, aliás, dizia que há “humildades que vêm do demônio”: são aquelas que vêm “acompanhadas de grande inquietação a respeito da gravidade dos nossos pecados”. A humildade verdadeira, ensinava a carmelita, “não inquieta, não desassossega nem deixa a alma em alvoroço, por maior que seja; ao contrário, vem com paz, com contentamento e tranquilidade” – e “amplia o coração”.

Justamente por sua incapacidade de ser autorreferencial, uma longa tradição viu na humildade a condição para a prática da virtude, na medida em que a virtude se dirige precisamente a agir em favor do outro e não em vista dos próprios interesses. Confúcio dizia que “a humildade é o fundamento sólido de todas as virtudes”. João Crisóstomo, arcebispo de Constantinopla na virada do século IV para o V, afirmou algo parecido: “A humildade é raiz, mãe, protetora, fundamento e vínculo de todas as virtudes”.

A humildade, enquanto disposição a não ser o centro e, assim, a voltar o olhar para além do nosso umbigo, é o que está no cerne da concepção de tsimtsum – “contração”, em hebraico –, elaborada pelo místico judeu Isaac Luria no século XVI. Segundo ele, o ato criador de Deus é semelhante ao de um retraimento: Deus faz espaço, renunciando a ser tudo, para que a sua criação possa existir, como uma mulher que contrai o seu ventre para hospedar uma nova vida dentro de si. Na mesma linha, o poeta polonês Jan Twardowski escreveu: “Deus se escondeu para que se visse o mundo / Se se mostrasse, haveria apenas ele / Em sua presença quem ousaria notar a formiga?”

Liberdade, beleza e alegria

Comentando a noção de tsimtsum, o teólogo francês François Varillon avaliou que “o exibir-se seria confissão de uma potência defeituosa. O retrair-se é, ao contrário, supremo poder”. Com a sua estreita relação com a questão do exercício do poder, a humildade não é decorativa: vivê-la ou não tem grandes consequências. O papa Paulo VI dizia que “todas as grandes desordens sociais e políticas têm no egoísmo e no orgulho o seu caldo cultural”, de tal forma que “há um parentesco entre a humildade e o exercício da autoridade indispensável à justiça e ao bem comum”.

Para a filósofa francesa Simone Weil, “a humildade é o que faz a diferença entre a arte de primeira grandeza e todo o resto em matéria de arte”. Nesse sentido, o poeta nicaraguense Ernesto Cardenal não tinha dúvidas: os poetas ruins o são “por falta de humildade: querem brilhar, e assim enchem a poesia de adornos e de coisas desnecessárias”. Já o filósofo inglês Roger Scruton dizia que a beleza “é um chamamento para renunciarmos ao nosso narcisismo e olharmos para o mundo com reverência”.

“Num processo terapêutico orientado, a arte propicia o autoconhecimento mediante projeções simbólicas nas obras feitas dentro do processo. Ao acolher humildemente o que aparece no trabalho artístico a pessoa pode reconfigurar-se a si mesma”, explica o arteterapeuta Lincoln Haas Hein. “Além do acolher humilde das formas que se vão elaborando em diálogo com o material artístico, há um acolher do próprio material artístico, um acolher do húmus, da matéria humilde em sua realidade concreta específica; isso é algo que possibilita o encontro e a transformação”.

Nada tendo a ver com baixa autoestima ou com uma atitude cabisbaixa, a humildade tem a ver com a alegria e a fruição. É a atitude de não apenas não se considerar grande – como os personagens que o principezinho visitou – mas de libertar-se da necessidade de avaliar o próprio tamanho, tomando a pequenez como um dado e um dom. Assim se compreende, acolhendo a própria fragilidade, a beleza de não ser o centro, mas de se perceber numa trama de relações. “A humildade acompanha cada grande alegria da vida com a precisão de um relógio”, dizia Chesterton: é preciso uma atitude de abertura, contrária ao ensimesmamento, para se deixar ser surpreendido pela alegria.

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