É bom que a gratidão esteja na moda, desde que essa virtude seja compreendida com a profundidade que merece
Detalhe de “Flores em um vaso de cristal” (1882), de Édouard Manet.| Foto: Domínio público

A gratidão nos soa como uma virtude com verniz de novidade. Quem não se lembra da reação de “gratidão” que o Facebook liberou no período do Dia das Mães em 2016 e 2017 – uma florzinha lilás – ou quem nunca viu um post com uma hashtag de gratidão? É bom que a gratidão esteja na moda, desde que essa virtude seja compreendida com a profundidade que merece.

“É importante questionar como ‘gratidão’ virou uma palavra da moda. Parece um sinônimo de positividade, de expressar que está tudo bem. Isso é muito perigoso. Hoje até se cunhou a expressão ‘positividade tóxica’, que se trata de achar que tudo está bem o tempo todo e que devemos ser gratos por tudo. Isso é muito alienante e chega a ser desrespeitoso. É muito complicado você falar que tem que ser grato porque algo ruim aconteceu. Gratidão não é isso”, avalia o psicólogo Matheus Vieira.

O filósofo francês André Comte-Sponville alerta para outra confusão que se pode fazer a respeito da gratidão: ela nada tem a ver com a troca de favores ou a retribuição de cortesias, com a lisonja e o puxa-saquismo ou com a complacência e a servilidade diante de quem nos faz algum favor – o que pode desandar facilmente para a corrupção, tornando-a o oposto de uma virtude. Para o filósofo, a gratidão é um “eco de alegria” diante do dom.

A vida não é uma dívida

“A gratidão nada tem a dar, além do prazer de ter recebido. Que virtude mais leve, mais luminosa, (...) sim, que virtude mais feliz e mais humilde, que graça mais fácil e mais necessária do que ser grato, justamente, com um sorriso ou um passo de dança, com um canto ou uma felicidade?”, exclama Comte-Sponville. Segundo ele, a gratidão sabe “ver no outro a causa de sua alegria” – e por isso ela é uma virtude tão fundamental.

A gratidão, diz o filósofo, “é amor” e “se sabe plenamente satisfeita, além de qualquer expectativa e anteriormente a qualquer expectativa, pela própria existência do que a suscita, e que pode ser Deus, quando se crê nele, que pode ser o mundo, que pode ser um amigo, um desconhecido, que pode ser qualquer um, porque ela se sabe objeto de uma graça – aí está! – que é a existência, talvez, ou a vida, ou tudo, e que ela agradece, sem saber a quem nem como, porque é bom agradecer, regozijar-se com seu regozijo e com seu amor, cujas causas sempre nos excedem, nos contêm, nos fazem viver, nos arrebatam”.

Graça e gratidão – a semelhança das palavras não é por acaso. A gratidão é a resposta a um dom, a algo que nos vem gratuita e graciosamente, e nos torna assim gratos e agraciados – e quem sabe até engraçados. O dom brota do agrado – outro termo correlato – de quem dá e agrada a quem recebe. Tudo de graça.

Comte-Sponville recorda que seu conterrâneo Claude Bruaire dizia que o espírito está “em dívida de seu ser” e comenta: “Mas que nada, porque ninguém pediu para estar (o empréstimo, não o dom, é que faz a dívida), pois ninguém, de resto, poderia saldar essa dívida. A vida não é dívida: a vida é graça, o ser é graça, e esta é a mais elevada lição de gratidão”. O dom não gera dívida: e assim a gratidão pode emergir do coração da mesma forma que o dom emergiu do coração do doador – gratuitamente.

Estado de graça

A gratidão está no centro da disposição religiosa no judaísmo e no cristianismo. A oração de bênção – de bendição, dizer bem, ou seja, louvar a Deus como autor de todo dom – é talvez a forma mais fundamental da oração nessas tradições. No judaísmo, se expressa pela berakhah, o agradecimento constante ao Senhor como fonte de todo o bem. No cristianismo, a berakhah permanece – um belo exemplo dessa forma de orar é o Cântico das criaturas de Francisco de Assis – e incorpora o agradecimento ao Pai por ter nos enviado o seu Filho e se torna “eucaristia” – em grego, “ação de graças” –, a celebração que está no centro da vida litúrgica cristã.

Para Lutero, a gratidão é “a atitude cristã básica”. “Numa perspectiva cristã, a gratuidade está vinculada ao conceito grego charis, como caridade, amor ou expressão maior da graça, que consiste na essência de Deus mesmo”, explica o teólogo Elias Wolff, professor do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). “Assim, ser grato, viver no espírito de gratidão, se vincula ao que entendemos como uma vivência de estado de graça. Quando somos agraciados, vivendo em estado de graça, entendemos que não podemos corresponder à altura do bem que recebemos. Se nos sentimos devedores, não estamos no espírito de gratuidade”.

Se toda virtude é expressão de uma única virtude, o amor, a gratidão nos ensina que a virtude começa do lado de fora: nós não somos capazes de oferecer amor se não o recebemos – é quando o amor recebido nos abre os olhos para o fato de que somos valiosos que reconhecemos essa dignidade incalculável também no rosto do outro. Talvez por isso Cícero dizia que “um coração grato não é apenas a maior das virtudes, mas a mãe de todas as virtudes”.

“A justa relação com as pessoas consiste em reconhecer, com gratidão, o seu valor”, disse o papa Francisco. “Cada pessoa é um dom, seja ela o nosso vizinho ou o pobre desconhecido. Cada vida que se cruza conosco é um dom e merece aceitação, respeito, amor”. Ao revelar o rosto do outro como um dom, a gratidão revela que não vivemos a não ser na relação com os outros. Daí ela não ser uma modinha, mas uma atitude humana fundamental.

Entretecidos uns aos outros

Essa dinâmica entre amor recebido e amor doado não é apenas um dos temas fundamentais do Novo Testamento: ela também aparece na literatura, na música, no teatro e no cinema. Basta lembrar de Jean Valjean, protagonista de Os miseráveis, de Victor Hugo, verdadeiramente tocado no fundo do seu ser quando o bispo de quem roubou talheres de prata – e que o tinha acolhido em sua casa – diz aos policiais que lhe tinha dado os talheres. A partir dali, Valjean se transforma – ele vive dessa experiência de gratidão.

“Nós recebemos a nossa vida não apenas no momento do nascimento mas todos os dias desde fora – desde outros que não são nós mesmos mas que mesmo assim, de alguma maneira, têm a ver conosco. Os seres humanos têm a si mesmos não apenas em si mesmos, mas também fora de si mesmos; eles vivem naqueles a quem amam e naqueles que os amam”, escreveu Joseph Ratzinger. Quando expressamos a gratidão, expressamos essa comunhão que une a humanidade através de gestos de doação desinteressada.

Crash, vencedor do Oscar de melhor filme em 2006, apresenta como as nossas histórias se entrelaçam umas às outras, o que mostra como, a despeito de toda a dor, só podemos viver a partir da graça, inundados de gratidão. “Ser grato por um passado ruim não é lhe dar glórias e ficar feliz por ele. Ser grato permite não se limitar a chorar por ele e a usá-lo para justificar uma série de coisas. Ser grato é ter um entendimento sobre ele”, explica o psicólogo Matheus Vieira.

A gratidão é um conhecimento: o conhecimento de que o amor do outro – de Deus, do próximo – nos sustenta. É a graça que levou alguém como Etty Hillesum a confessar, do meio de um campo de concentração na Segunda Guerra Mundial: “Às vezes quando paro em algum canto do campo, meus pés plantados na terra, meus olhos elevados ao céu, lágrimas rolam pelo meu rosto – lágrimas de profunda emoção e gratidão”.

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