Charge: CARGALO.
Charge: CARGALO.| Foto:

O brasileiro, quando não tem público, dinheiro ou persistência para ser votado, deposita seus sonhos no ato de votar. Votar ou ser votado, eis a questão. Em ambos os casos, a lógica (do desespero e terceirização do dever) é a mesma: a política partidária com dinheiro parece, aos olhos cansados, suficiente para resolver tudo. Isto não significa automática e necessariamente que todo aquele que será candidato, ou já está na política, é também, por isto, uma besta quadrada de quatro costados. (Grande parte é assim, porém existem umas poucas exceções.) Há aqueles que este ano concorrerão a cargos públicos, alguns deles eu até conheço, que têm plena consciência dos limites e contrariedades da política partidária, e mesmo assim, impelidos pela consciência e dever de sua vocação, estão dispostos a penetrar nessa máquina de moer carne e mudar, com suor e sangue, uma coisinha aqui e ali.

Identificar um bom candidato no Brasil é um trabalho hercúleo e, quase sempre, materialmente irrealizável. Devemos fugir de primeiras impressões, de jargões afetados e evitar, em alguns casos, associar o partido à idoneidade pessoal – é claro que no caso de partidos declaradamente progressistas isto não se aplica; basta estar inscrito no Foro de São Paulo, por exemplo, para excluir as chances de votar em Fulano ou Sicrano. Um candidato que não deposite todas as suas expectativas na política é também alguém menos propenso a se vender para permanecer nela.

O problema é: se fulano quer entrar na política, como saber se ele não a endeusa e nela pretende armar suas tendas e dizer “bom é estarmos aqui”? Temos algum exemplo perto do ideal que tenha conseguido aliar algum sucesso político com algum legado, maior e mais amplo, para a humanidade e que foi incorporado na alta cultura após sua morte? Alguém que evitou perder oportunidades do presente, soube atualizar o passado sem destrui-lo e cuja vida deixou um tesouro para as gerações futuras?

Essas perguntas nos permitem começar a composição de uma personalidade política ideal, um tipo, digamos, votável – ainda que todo voto, como diziam os antigos gregos, é um depósito de confiança na expectativa de palavras e atos que se realizarão no futuro. Alguém que não carregue, como alertou Eugen Rosenstock-Huessy em A Origem da Linguagem (Record, 2002), as quatro doenças da linguagem: 1) surdez diante do inimigo; 2) mudez diante do amigo; 3) gritaria contra a velha articulação da tradição; e, por fim, 4) estereotipagem da nova vida.

O irlandês Edmund Burke (1729 – 1797) é seguramente um bom exemplo. Sob o aspecto puramente político partidário, durante os vinte e nove anos que passou entre os whigs ingleses, o pai do conservadorismo não teve avanços e conquistas significativos, como um Reagan ou um Churchill, grandes estadistas. A diferença, porém, é que tanto Reagan como Churchill ergueram-se gloriosa e fixamente sobre o incólume legado de Burke. Sua biografia permeou os imediatismos políticos mais banais de seu tempo e estruturou, por escritos de leitura obrigatória, as bases da Política da Prudência, ou aquilo que conhecemos como Conservadorismo.

Suas obrigações e inquietações políticas do momento, tais como a Revolução Francesa e as acusações de Warren Hastings, foram absorvidas, transformadas e ampliadas para a alta cultura. Analogamente, é o que fez o professor e filósofo Olavo de Carvalho ao edificar sua monumental obra O Jardim das Aflições: a partir de uma deprimente preleção de José Américo Motta Pessanha, em um seminário de ética em 1993, Olavo compôs uma harmoniosa e fustigante narrativa em espiral crescente sobre a falência intelectual do Ocidente e o estabelecimento de uma nova era na qual o indivíduo solitário é abolido e engolido por uma nova concepção de Império, que remonta os delírios dos césares de antanho.

A missão cultural evangelizadora de Edmund Burke absorvia e elevava quase que instantaneamente as situações cotidianas pelo imenso imaginário da tradição sagrada e literatura clássica que estruturavam seu imaginário: Milton, Shakespeare, Virgílio, Dante, Homero, Spenser, Cícero, Aristóteles e Juvenal, para mencionar alguns.

É sonhar alto demais que candidatos à cargos políticos no Brasil carreguem uma personalidade sequer perecida com a de Burke. O sarrafo está alto demais, mas já é um começo. Nossas exigências tem de partir daí para, só então, criar uma espécie de hierarquia de prioridades e critérios de escolha.

Infelizmente a realidade não é bem assim. Por ora, considerando o estado latrinal da política brasileira, precisamos de alguém que não esteja envolvido com ladroagem, saiba falar ao coração do povo e foque na solução de questões prementes: assassinato e burrice, ou seja, segurança e educação, respectivamente. Enquanto estas duas mazelas não forem extirpadas, de nada adianta sonhar com um político eruditíssimo em Dante Alighieri, porque é preciso, antes de tudo, que um Virgílio tupiniquim nos tire do inferno.

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