Como vivem pessoas diagnosticadas com DPOC?
Imagem mostra um homem, idoso, usando uma bombinha de asma, mas que também pode ser usada como parte do tratamento de DPOC.| Foto: Bigstock.

Aos oito anos de idade, Gabriel Dreher sabia que se a mãe estivesse ofegante ou se concentrasse para respirar, era a hora de chamar a ambulância. Kelly Mesquita Ribas, hoje com 44 anos, sofreu a vida toda com doenças respiratórias, e a situação piorou quando descobriu que também tinha o DPOC.

A sigla se traduz em Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica, condição que afeta cerca de 300 milhões de pessoas no mundo e, no Brasil, 7,3 milhões, de acordo com dados da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT).

Quando exposto a uma fumaça, em geral a do cigarro, durante um período longo de tempo, o pulmão sofre uma alteração na estrutura. "A função do pulmão é captar o oxigênio que está no ar e levá-lo para o sangue. É a função mais básica. Quando há o DPOC, o pulmão fica amolecido, frágil e não funciona", explica Rafael Stelmach, médico pneumologista do hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/FMUSP).

Didaticamente, Rafael assemelha o principal órgão do sistema respiratório a uma bexiga de festa infantil. Um pulmão saudável, tal qual a bexiga, pode ser enchido e, quando o ar é liberado, volta ao tamanho de antes. Quando a enchemos novamente, e a soltamos, a estrutura da bexiga (e do pulmão) não é afetada.

Isso muda a partir do momento em que a pessoa dedica anos da vida ao cigarro (ou outras fumaças e poluições). "As fibras do pulmão, com o cigarro, são destruídas, e a 'bexiga' não volta mais. O pulmão enche, mas não esvazia, fica cheio", diz o especialista, desmistificando um senso comum de quem não conhece o DPOC: o doente nem sempre tem uma dificuldade em puxar o ar, mas em deixá-lo sair.

"Essa é a doença. Há pacientes com mais e outros com menos falta de ar. Alguns com catarro, outros não. E, depois da doença, após essa exposição ao agente externo, não há nada mais a fazer. O pulmão está destruído. Ou faz um transplante ou a pessoa está sempre sujeita a crises e pioras. Quadros de gripe ou resfriado, mudança de temperatura, poluição, aumentam o risco para as crises", relata.

Novos ares

Fugindo das crises, Kelly decidiu abandonar também a cidade onde morou boa parte da vida, Curitiba, e se mudar para onde o clima não controlasse a própria saúde. Há dois anos, a assistente administrativa se mudou com a filha mais nova, Maria Clara Mesquita dos Santos, de quatro anos, para a cidade de Matinhos, no litoral paranaense.

"Meu filho ficou em Curitiba para estudar e eu fui com a minha filha por um mês, para ver se nos adaptávamos. Deu certo. Eu tive crises, mas usei metade da bombinha que eu usava. Antes de ir para o litoral, eu usava oito bombinhas por mês. Lá eu uso duas a três", relata Kelly, que recebeu o diagnóstico do DPOC com 36 anos, depois de ter crises de asma severa desde a infância e fumar desde os 12 anos.

Kelly, com a sua mãe Rosaneide Dreher Mesquita, mostram os laudos médicos que carregam a todas as consultas médicas e internações. Foto: Amanda Milléo / Gazeta do Povo
Kelly, com a sua mãe Rosaneide Dreher Mesquita, mostram os laudos médicos que carregam a todas as consultas médicas e internações. Foto: Amanda Milléo / Gazeta do Povo

Regras sem exceção

Para manter as crises severas longe, Kelly desenvolveu regras para ela mesma, para a casa e até para a rotina com a filha.

A casa em que vive no litoral não tem tapetes, nem cortinas. Ela não usa vassoura, mas um rolo mágico, que faz a limpeza do chão sem levantar o pó. Nem mesmo o aspirador é permitido, visto que ela não pode lavar o saco do aparelho sem se colocar em risco.

Cobertores foram substituídos pelo edredom, e os livros se transforaram em leitores de e-book. A filha não pode ter bichinhos de pelúcia e todos os armários, cômodas ou qualquer móvel que acumule poeira fica em um único quarto, que não é onde Kelly dorme.  

"No meu quarto só tem a cama e a televisão. Minha cama é forrada, o travesseiro também. Parece uma coisa meio neurótica, mas é o que resolve no final. Por isso que tem muito convite que eu não aceito. Se a pessoa me chama para um aniversário com churrasco e que vai ter gente fumando, eu não vou porque a fumaça do cigarro e da churrasqueira vão me trazer problemas", explica Kelly, que também reclama por passar por antipática às vezes.

"O que eu falo para a pessoa? Que a casa dela ficou fechada e vai ter mofo? Parece antipático, mas é mais educado do que estar lá e atrapalhar a festa porque preciso ir correndo para o hospital em uma ambulância", diz.

Nos dias em que sente que pode entrar em crise, Kelly deixa o portão de casa aberto. Ela sabe que a filha ainda é pequena e que talvez não consiga pedir ajuda, embora já entenda o que significam os sintomas da mãe.

"Ela percebe e diz 'mamãe está com falta de ar, cadê a bombinha?'. Ela brinca com isso. Esses dias uma boneca dela estava 'no soro'. Eu prefiro que ela saiba e perceba porque se eu tiver uma crise muito feia, ela tem que saber o que está acontecendo para não se apavorar", relata.

Chefes, amigos mais próximos e familiares já sabem: se a Kelly se atrasar para um compromisso, algo está errado.  "Estou tentando ensinar a Maria a ligar para outras pessoas e deixo avisado: se tocar o telefone com meu número e ninguém falar nada, vai lá ver o que foi que aconteceu".

Com a filha Maria Clara, de 4 anos, Kelly se mudou para Matinhos, no Litoral do Paraná, para melhorar os cuidados com a própria saúde Foto: Amanda Milléo / Gazeta do Povo
Com a filha Maria Clara, de 4 anos, Kelly se mudou para Matinhos, no Litoral do Paraná, para melhorar os cuidados com a própria saúde Foto: Amanda Milléo / Gazeta do Povo

Oxigênio: último recurso

Por se tratar de uma doença crônica e, portanto, leva um tempo até se manifestar, as pessoas que sofrem com o DPOC recebem, em geral, um diagnóstico tardio da condição.

Com sintomas que podem indicar outras doenças, como cansaço e fadiga, é comum que os pacientes procurem especialistas em outros órgãos, como coração, antes de procurarem pelo pneumologista.

"Você fica incapaz de fazer quase tudo. Não há reversão. A única coisa que minimiza é parar de fumar ou de se expor à fumaça. Essa é a única intervenção que realmente muda a história do paciente. Quanto mais cedo, melhor", reforça Rafael Stelmach, médico pneumologista.

Os medicamentos disponíveis hoje, como os inaladores de resgate e os esteroides inalados ou orais, melhoram a qualidade de vida a partir da redução dos sintomas. "Reduzem a quantidade de crises, melhoram a falta de ar, e alguns diminuem o cigarro", explica o médico.

Em casos mais avançados e graves da doença, pacientes são obrigados a terem sempre um tanque de oxigênio por perto.

"O oxigênio é usando quando, apesar de todas as medicações e a reabilitação, o pulmão tem uma lesão tão grande que não capta o oxigênio adequadamente do ar. Como ele não funciona, enganamos, enchendo-o com oxigênio. É indicado a casos mais graves e é um tratamento que melhora a falta de ar e o desconforto", afirma Stelmach.

Ainda que caminhar, tomar banho e fazer atividades domésticas seja sofrido, o oxigênio tende a ajudar os pacientes na qualidade de vida. Foi assim com Marya Aparecida Xavier.

Com 57 anos, a aposentada usa oxigênio 24 horas por dia, em uma dosagem de 2 mL, além de outros medicamentos. "A própria água do banho, quando bate no corpo, me causa um mal estar. Eu não tenho problema com o vapor, mas com locais fechados. Eu desenvolvi um pouco de síndrome do pânico. Para tomar banho, coloco um banco e fico com o oxigênio. Tomo banho sentada e não fecho a porta", relata a moradora de Campinas (SP).

Marya precisa fazer uso do oxigênio todos os dias, durante todo o dia, devido ao avanço da doença Foto: Arquivo pessoal
Marya precisa fazer uso do oxigênio todos os dias, durante todo o dia, devido ao avanço da doença Foto: Arquivo pessoal

Raquel Maria Fagundes, de 70 anos, tem pavor do oxigênio. Diagnosticada precocemente, a aposentada relata que fumou durante 50 anos e está apenas há pouco mais de 10 meses sem fumar.

"Eu não uso o cilindro de oxigênio, e nem vou usar. A esposa de um conhecido está no oxigênio e se ela tirar a máscara, morre. Eu não quero chegar a esse ponto", conta.

Raquel recebeu o diagnóstico de DPOC antes de precisar fazer uso do oxigênio Foto: Arquivo pessoal
Raquel recebeu o diagnóstico de DPOC antes de precisar fazer uso do oxigênio Foto: Arquivo pessoal

O diagnóstico do DPOC veio há dois anos, que veio na esteira de outra doença pulmonar, a enfisema. "Eu sentia que o que eu respirava não era suficiente para encher o pulmão. Com o tratamento, tive uma melhora de 90%. Antes eu sentia muita canseira, não fazia nada de manhã até às 11h. Não conseguia arrumar uma cama. Hoje já faço", diz.

Quanto ao cigarro, Raquel conta que depois de uma crise forte, em maio do ano passado, foi tentar dar uma tragada. "Eu não conseguia. A fumaça não entrava. Ali eu percebi que ou eu fumava ou respirava. Eu ainda tenho cigarro, mas não acendi mais nenhum desde então, embora dê uma vontade de vez em quando."

Cigarro eletrônico: Ainda não é possível associar o uso do cigarro eletrônico com o DPOC por uma questão simples, conforme explica Rafael Stelmach, médico pneumologista: não deu tempo. “O DPOC classicamente exige uma exposição de longo tempo. Pelo que vemos da intensidade das lesões do eletrônico, as pessoas não vão chegar a viver o suficiente para ter lesão por DPOC”, explica o médico.

Conteúdo editado por:Adriano Justino
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