Recentemente a gência reguladora de alimentos e remédios dos Estados Unidos (FDA) autorizou a divulgação e venda de um jogo de videogame destinado a crianças TDAH
Recentemente a gência reguladora de alimentos e remédios dos Estados Unidos (FDA) autorizou a divulgação e venda de um jogo de videogame destinado a crianças TDAH| Foto: Julia M Cameron/Pexels

Em decisão inédita, a agência reguladora de alimentos e remédios dos Estados Unidos (FDA) autorizou a divulgação e venda de um jogo de videogame destinado a crianças com transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Trata-se do primeiro dispositivo eletrônico aprovado para lidar com o distúrbio e a primeira vez que autoridades norte-americanas liberam um tratamento à base da chamada “terapia digital”.  

"O EndeavorRx oferece uma opção não medicamentosa para melhorar os sintomas associados ao TDAH em crianças de 8 a 12 anos e é um exemplo importante do crescente campo da terapêutica digital", justifica Jeffrey Shuren, diretor do Centro de Dispositivos e Saúde Radiológica da FDA. O recurso também tem sido testado em outras enfermidades, como transtornos de dependência e de ansiedade e até no controle de dores crônicas.

Antes da liberação, no entanto, a agência dos EUA revisou dados de cinco ensaios clínicos sobre o game feitos em mais de 600 crianças. Os estudos avaliaram, entre outras coisas, se os participantes demonstraram avanço na função de atenção, medida pelo Teste de Variáveis ​​de Atenção (TOVA). Os efeitos adversos observados foram frustração, dor de cabeça, tontura, reação emocional e agressividade, mas a FDA não os considerou graves.

Sobre o jogo

Comercializado apenas sob prescrição médica, o EndeavorRx é diferente de outros games que uma criança pode acessar. “O tratamento programado foi cientificamente projetado para desafiar o cérebro, exigindo a atenção máxima da criança, que precisa se concentrar em várias tarefas ao mesmo tempo”, diz o site da fabricante Akili Interactive.  

O game permite aos jogadores controlar personagens em uma espécie de prancha e é projetado para direcionar e ativar sistemas neurais por meio de estímulos sensoriais e desafios motores. “Com o EndeavorRx, estamos utilizando a tecnologia para ajudar a tratar uma doença de maneira completamente nova, já que focamos diretamente na função neurológica com um medicamento que parece entretenimento”, afirma Eddie Martucci, diretor executivo da empresa.

TDAH

Doença de base genética, o TDAH tem como principais implicações a desatenção, hiperatividade e impulsividade. E, por serem características cognitivas, acaba repercutindo negativamente na vida escolar da criança. “Ele prejudica parte de concentração, memória de trabalho e pode ter impacto, inclusive, na parte social, já que estamos falando de indivíduos mais impacientes e ansiosos”, explica o neuropediatra Antonio Carlos de Farias, do Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba (PR).   

Segundo o especialista, “são comportamentos decorrentes de um mal funcionamento cerebral. É um cérebro que processa a atenção de uma forma inadequada”, resume. Via de regra, quando não controlado, o transtorno pode originar adultos desligados, que costumam esquecer compromissos e repetir os mesmos erros.

Prevalência e tratamento

Hoje, a informação mais aceita entre a classe médica é a de que 5% da população brasileira tenha TDAH, algo entre 3 milhões e 3,5 milhões de pessoas. Tradicionalmente, o combate aos efeitos do distúrbio (na infância) se dá por meio de acompanhamento psicológico e pedagógico, associado ao uso de psicoestimulantes, como Ritalina, Venvanse e Concerta.

"O estimulante tem um efeito muito positivo na melhora da atenção e da memória operacional, mas o medicamento, por si só, não resolve 100% do problema, já que o TDAH tem muitas particularidades", aponta Farias, citando dificuldade de aprendizado e propensão a quadros depressivos e de ansiedade como as mais comuns. "São crianças que, muitas vezes, precisam de uma espécie de coach para ajustar o comportamento, alguém que as ajude a dar começo, meio e fim para as atividades" , completa.

Estudo

O próprio médico, que é mestre e doutor em Neurociência, desenvolveu, em 2017, um estudo sobre a eficácia do uso de softwares de treinamento cognitivo em pacientes com TDAH. Ao todo, 27 crianças fizeram parte do experimento: 19 com o uso de medicação e 8 sem. Em um período de três meses, elas completaram 24 sessões de uma hora usando um sistema de estímulo à atenção, raciocínio e funcionamento executivo.

“As crianças apresentaram mudança principalmente nas habilidades treinadas. Tiveram evolução na parte de discriminação visual, melhoraram as notas nas provas de Matemática e também na memória operacional (aquela que a gente usa para armazenar dados na mente e interpretar textos ou resolver problemas aritméticos)”, ressalta Antonio Carlos de Farias.

Análise

Com relação ao game aprovado pela FDA, o especialista defende que há base científica para respaldar o uso de jogos eletrônicos no treinamento de habilidades intelectuais específicas, mas que algumas questões precisam ser observadas. “É claro que tudo que a gente faz de forma repetitiva acaba ganhando destreza, vai melhorando as pontuações. Agora, a primeira coisa a se considerar é até que ponto essa modelagem feita no cérebro migra do momento em que a criança está jogando para a vida real”, sustenta.  

Outro ponto levantado por Farias, é a durabilidade dos novos estímulos. “Nós estamos falando de um transtorno do neurodesenvolvimento, que muda as características ao longo do tempo. Então, às vezes, a criança pode até ter uma melhora agora, mas será que daqui a 10 anos ela não vai retornar ao mesmos sintomas, ou então, apresentar outras consequências?”, questiona.

O neuropediatra faz, ainda, um alerta aos pais de que não são todos os games que têm esse poder de atenuar os sinais do TDAH e de que não há, até o momento, conclusões fortes o bastante para assegurar que foi só o uso do jogo que melhorou as habilidades cognitivas das crianças testadas. “São novos recursos ao tratamento, mas que não vieram para substituir as estratégias já existentes”, conclui.

Terapêutica

Apesar de terem se popularizado como fonte de diversão, os jogos sempre tiveram o uso “mais sério” (serial games) relacionado a simulações e treinamentos, em especial por parte dos militares. “Hoje muitas empresas e órgãos governamentais usam o jogo não só para divulgar algum produto, mas, principalmente, para treinar habilidades”, diz Francisco Tupy, mestre e doutor sobre a aplicação de videogames na Educação e na Comunicação, pela USP.

Como meio de promoção à saúde, ele aponta o uso de "exergames", jogos ligados a exercícios que vão além dos desafios mecânicos apresentados nos enredos. “Quando surgiu o Nintendo Wii, o kinect (sensor de movimentos) e as câmeras perceptuais, os games começaram a ter uma popularização também em relação à sua prática associada ao bem-estar”, afirma.  

Para o pesquisador, o antes restrito uso terapêutico dos games está cada vez mais próximo da nossa realidade. “Seja transmitindo informação ou sendo usados para desenvolver habilidades e comportamentos, os jogos têm colaborado para avanços em pesquisas científicas e na autopreservação da saúde. Outras iniciativas nesse sentido (do EndeavorRx) devem surgir em breve”, declara.

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