No Brasil, estudos clínicos que envolvem a hidroxicloroquina/cloroquina devem continuar, diz Conep
No Brasil, estudos clínicos que envolvem a hidroxicloroquina/cloroquina devem continuar, diz Conep| Foto: Bigstock

Era para ser mais um estudo a contribuir com informações sobre o uso das substâncias hidroxicloroquina/cloroquina contra o vírus Sars-Cov-2. Mas a pesquisa divulgada na revista científica Lancet na última sexta-feira (22) ganhou mais repercussão quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) decidiu, três dias depois, suspender os ensaios clínicos que estudavam esses medicamentos no esforço global Solidarity, a fim de que as substâncias fossem reavaliadas.

Na sequência, o ministério da Saúde da França decidiu banir o uso dessas medicações em pacientes com a Covid-19, e a mesma medida foi tomada pelas agências reguladoras da Bélgica e da Itália. Nesses países, os medicamentos ainda podem ser usados, desde que restritos aos ensaios clínicos, nos quais os pacientes estão sob supervisão médica constante.

No Reino Unido, porém, um estudo lançado na semana anterior, que visava avaliar um possível efeito preventivo da hidroxicloroquina foi paralisado temporariamente. Participariam da pesquisa cerca de 40 mil pessoas, todos profissionais da saúde.

Estudos brasileiros devem continuar

Em reunião realizada na sexta-feira (29) pela manhã, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) avaliou que ainda é cedo para suspender, ainda que temporariamente, os estudos brasileiros que analisam a hidroxicloroquina/cloroquina, e essas pesquisas devem continuar. A entidade é a responsável pela aprovação dos estudos clínicos envolvendo medicamentos e pacientes no Brasil.

"Nós avaliamos que os dados [do estudo divulgado pela revista Lancet] são preliminares e o estudo é uma compilação de estudos observacionais, e não randomizados, clínicos, com braço controle e cegamento, que isso não existe ainda. E da parte da OMS, o que eles fizeram foi suspender o recrutamento e fazer uma consulta ao Comitê de Segurança, que ainda não respondeu. Então, é preciso esperar a decisão final da OMS, e ainda é cedo para ficar tomando providências", argumenta Jorge Venâncio, médico e coordenador da Conep.

A comissão entende, segundo Venâncio, que é uma situação especial e serve de "sinal amarelo" para os pesquisadores. "Estamos observando de perto, mas não é ainda o caso de paralisar." De acordo com dados da entidade, há no momento 16 estudos com a hidroxicloroquina/cloroquina em andamento no país. Desses, dois foram parcialmente suspensos, porém antes da discussão da OMS.

Um deles, conduzido pela Fiocruz do Amazonas, teve parte da pesquisa paralisada ao avaliar o uso da cloroquina em doses altas e registrar a morte de 11 pacientes. Depois disso, os pesquisadores interromperam o recrutamento de novos participantes, e estão sendo investigados pelo Ministério Público Federal (MPF).

O segundo, conduzido por um hospital do plano de saúde Prevent Senior, em São Paulo, foi temporariamente suspenso por violar protocolos éticos, visto que a pesquisa já estaria em andamento antes mesmo da aprovação do Conep, segundo a avaliação do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Há ainda uma pesquisa sendo conduzida pelo Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, da Fiocruz, que faz parte do esforço Solidarity, da OMS, que deverá ser paralisada.

Das demais pesquisas, algumas estão bastante avançadas. É o caso da Coalizão COVID Brasil II, coordenada pelo hospital Albert Einstein. Com cerca de 400 participantes, a segunda etapa avaliou dois grupos de pacientes com sintomas mais graves: os que receberam apenas a hidroxicloroquina e os que fizeram uso combinado da hidroxicloroquina com o antibiótico azitromicina.

De acordo com informações compartilhadas pela assessoria de imprensa da entidade, o estudo segue normalmente visto que, embora ainda não tenha uma data certa, os resultados devem ser divulgados na primeira semana de junho.

Importância dos resultados

Outro argumento da Conep para a continuidade das pesquisas está na importância dos resultados. Por se tratar de uma doença ainda muito nova, sem qualquer medicamento ou vacina indicados, pesquisas que avaliem a substância no chamado padrão-ouro da pesquisa científica (estudos com a randomização dos participantes, sem saber quem está tomando qual medicação), como boa parte das conduzidas no país, são bem-vindas.

"Acredito que o melhor, no momento, se for possível, seria levar esses estudos até o fim, para ter as conclusões deles. E o objetivo é chegar a uma conclusão científica", reforça Valêncio.

Esse é também o argumento do médico cardiologista Gilmar Reis, investigador principal do estudo Coalizão da Esperança I, que terá início nas próximas semanas. Randomizado, a pesquisa dividirá pacientes diagnosticados com a Covid-19, mas com sintomas iniciais, em quatro grupos: os que farão uso do medicamento liponavir/ritonavir; os que receberão a hidroxicloroquina; um terceiro grupo que receberá uma combinação das medicações anteriores; e um quarto grupo controle, que tomará um placebo.

"Estamos diante de uma doença sem tratamento, todo mundo está dando a sua contribuição. Estamos na expectativa de, pelo menos, dar uma resposta sobre a hidroxicloroquina e, qualquer que seja ela, vai ser muito importante. A hidroxicloroquina saiu do âmbito do interesse acadêmico e foi para o âmbito político, e nós precisamos de respostas", explica. Reis estima que os resultados da pesquisa serão divulgados em até três meses.

Risco cardíaco

Dos principais destaques do estudo divulgado pela revista científica Lancet está o risco de arritmia cardíaca entre os participantes que fizeram uso tanto da hidroxicloroquina quanto da cloroquina, em combinação com antibióticos ou não. De acordo com Jorge Valêncio, coordenador da Conep, esse é o principal sinal de alerta que os pesquisadores devem cuidar a partir de agora.

"Temos tomado o cuidado nas pesquisas aprovadas no Brasil de cobrar um acompanhamento de perto dos pacientes. Isso acontece quando a pessoa está internada, mas se for usar a cloroquina no paciente em casa, são necessárias uma preparação e uma atenção muito grande, um acompanhamento bem mais de perto", explica o médico.

O coordenador diz, ainda, que não houve até o momento o registro de efeitos substanciais de reações adversas ao uso das medicações entre participantes de estudos clínicos nas pesquisas brasileiras – exceto o caso de Manaus. "No caso dos estudos com pacientes internados, que são realmente a maioria das pesquisas aprovadas, [esse acompanhamento médico] pode ser feito com mais facilidade, mas há estudos com pacientes com sintomas leves, e do tratamento preventivo, que exigem mais atenção", completa.

A arritmia se caracteriza por uma alteração no ritmo dos batimentos cardíacos. Pacientes com essa alteração têm um risco aumentado para outros eventos, como infartos e AVCs. Esse dano foi observado tanto em pessoas que já tinham problemas cardiovasculares, quanto naquelas sem esse histórico, mas que fizeram uso da medicação.

"Nos casos leves temos cobrado um acompanhamento muito de perto do paciente, porque existe um risco importante de, se tiver efeito adverso, a pessoa não ter acesso ao atendimento adequado. Os pesquisadores devem verificar bem, fazer o eletrocardiograma da pessoa antes, e ver se é o caso de inclui-la ou não no estudo, ter cuidado com os critérios de inclusão", explica Valêncio.

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