Rins também podem ser comprometidos pela Covid-19
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Ao mesmo tempo em que estudos relacionados à Covid-19 se concentram em testar medicamentos e vacinas, outros se dedicam a encontrar os reflexos do vírus no organismo. Alguns deles, por exemplo, tentam decifrar se o novo coronavírus, chamado de SARS-CoV-2, também pode infectar diretamente outros tecidos além do pulmão, como os rins.

Um deles, realizado pelo Hospital Geral em Wuhan, na China, verificou que 27% dos pacientes com a doença analisados desenvolveram um quadro de Insuficiência Renal Aguda (IRA). Entre os idosos, e pessoas com comorbidades, essa condição se apresentou em mais de 60% deles. Para o estudo, foram avaliados 85 pacientes entre 21 e 92 anos, além da biópsia de seis corpos.

Ainda conforme dados divulgados pelos pesquisadores, ao avaliarem visualmente o dano no tecido dos rins, e a presença do vírus nos mesmos, foi possível ver que o novo coronavírus estava presente inclusive nos túbulos renais – parte do néfron, estrutura microscópica que elimina os resíduos do sangue.

Somado a outro estudo que identificou o vírus na urina de pacientes, os pesquisadores chineses dizem que a Covid-19 pode infectar diretamente os rins, ou um local de "infecção e replicação viral fora dos pulmões". Segundo os pesquisadores, "a IRA mediada por SARS-CoV-2 pode ser uma das principais causas de falha de vários órgãos, e eventual morte, nos pacientes de Covid-19".

Em outro estudo, os pesquisadores identificaram a IRA em 28% dos 193 pacientes avaliados, entre 26 e 95 anos, com pneumonia causada pela Covid-19. Em 43 deles, a doença estava em estado severo. O estudo também foi conduzido em hospitais chineses. "O desfecho primário foi a presença comum de disfunções renais em pacientes com Covid-19 e a ocorrência de lesão renal aguda em uma fração dos pacientes com a doença", diz trecho da pesquisa.

Vale reforçar que ambos os estudos ainda não passaram pela revisão de outros pesquisadores, e os resultados devem ser vistos com cautela.

Coronavírus nos rins: relação ainda não é clara

Para o presidente da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN) e médico da Fundação Pró-Renal, Marcelo Mazza, a "tempestade imunológica" causada pelo coronavírus e a resposta hiperinflamatória em casos graves pode fazer com que o vírus seja encontrado em diversas parte do organismo. "Ainda é muito cedo pra ter uma resposta sobre essa relação causa-efeito renal", diz.

Em nota divulgada no dia 14 de abril, a SBN disse que "observa grande variação de IRA nas poucas séries publicadas, sendo a maioria dos estudos oriunda de Wuhan, talvez pela superposição de casos e com viés de inclusão de pacientes mais graves".

Em uma compilação de 12 estudos entre janeiro e março com 3.472 pacientes ao todo, que não incluiu os dois estudos citados acima, a incidência média de IRA foi de 5,8% em casos graves, com 2,1% dos pacientes necessitando de suporte renal artificial. O IRA variou de 0,5% a 23%, sendo a menor taxa percentual presente no maior estudo quantitativo, em 1.099 pacientes. "Esses dados preliminares não sugerem maior incidência de IRA de pacientes com Covid-19 em comparação a outros pacientes com o mesmo perfil de gravidade", diz a SBN.

Mais estudo são necessários

O nefrologista do Hospital São Vicente e do Hospital das Clínicas da UFPR, Rodrigo Leite da Silva, concorda sobre a necessidade de mais estudos para descobrir exatamente os efeitos da doença nos rins. Ainda assim, o médico reforça que os dois estudos chineses mencionados acima apontam para uma insuficiência renal aguda maior do que em outras pneumonias ou síndromes respiratórias agudas (SRAG). "Parece mais patológico para o rim do que outros vírus, mesmo em pacientes sem doença prévia", diz.

Para ele, as conclusões fazem sentido, pois o SARS-CoV-2 entra na célula pela proteína que controla, entre outras coisas, a pressão arterial, a ECA-2 (Enzima Conversora da Angiotensina 2), presente nas células de pulmão, rins e em outros órgãos. "As células do rim expressam essa proteína 100 vezes mais do que o pulmão, faz sentido que o vírus ataque o rim além dos pulmões", explica.

No estudo com 193 pacientes, Silva destaca as inflamações nos rins que foram identificadas em pacientes logo que foram admitidos no hospital, por meio de tomografia dos pulmões que também mostrou os rins. Do total, uma parte significativa dos pacientes apresentava sinais de disfunções renais, "incluindo 59% com proteinúria, 44% com hematúria, 14% com níveis aumentados de nitrogênio da uréia no sangue e 10% com níveis aumentados de soro creatinina, pior que nos casos com outras pneumonias."

"Enquanto essas disfunções renais podem não ser prontamente diagnosticadas como IRA na admissão, pelo progresso durante a hospitalização elas podem piorar gradualmente", dizem os pesquisadores chineses. Pacientes com Covid-19 que desenvolveram a IRA apresentavam um risco de mortalidade cinco vezes maior em relação aos que não tiveram a insuficiência, segundo os pesquisadores.

De acordo com o nefrologista Marcelo Mazza, o aumento da taxa de mortalidade de pacientes com lesões renais agudas é comum em diversas situações. "Acontece em qualquer insuficiência respiratória que evolui com problema renal. Aumentam as chances de morrer", afirma. "O desenvolvimento de IRA em pacientes com extenso dano pulmonar depende de outros fatores clínicos, como o tempo de chegada no hospital, e pode até ser um efeito adverso da ventilação mecânica", explica.

Mazza ressalta que, no momento, as informações disponíveis não permitem definir se essa é uma associação independente ou apenas um reflexo da gravidade do quadro clínico. "É o vírus que está causando a insuficiência renal? Ou são situações paralelas que levam a isso? Não dá para dizer categoricamente", comenta.

Terapias e substituição renal nos pacientes

Os dois estudos chineses citados acima sugerem que os médicos tenham alto grau de monitoramento e intervenções nos doentes da Covid-19, incluindo terapias de substituição renal, para proteger a função dos rins, independentemente de como a doença evoluiu.

A SBN orienta que a participação dos nefrologistas deve ser feita de preferência por via remota, devido a conjuntura da pandemia, com o médico intensivista assumindo as atividades mais urgentes. "Dentro dessa ótica, o nefrologista pode ser acionado em qualquer situação de necessidade, mesmo com graus discretos de disfunção renal, uma vez que a atuação nefrológica na medicina intensiva não se limita à IRA".

Segundo a sociedade, a escolha do método de suporte renal artificial deve ser individualizada, considerando aspectos logísticos e a experiência de cada instituição. As modalidades incluem os métodos contínuos de substituição renal (HDC), a hemodiálise prolongada (HDP), a hemodiálise intermitente convencional (HDI) e a diálise peritoneal (DP).

A HDP e a HDI devem ser as principais opções, já que o método contínuo é limitado no país. "Fazer a diálise contínua, tratamento suporte 24h, é caro e complexo, pouco lugares têm essa estrutura. Raramente está disponível fora de UTI e mesmo nas unidades intensivas é menos habitual do que o respirador", diz Silva.

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