Medicação antiparasitária ainda está sendo avaliada contra a Covid-19, e faltam estudos robustos com seres humanos.
Medicação antiparasitária ainda está sendo avaliada contra a Covid-19, e faltam estudos robustos com seres humanos.| Foto: Bigstock

Passados quase 16 meses da pandemia do novo coronavírus, muitos tratamentos e remédios seguem sendo testados. Entre aqueles que, desde o começo, foram aventados como possibilidades, a ivermectina é um daqueles que têm sua eficácia estudada, com novos capítulos recentes.

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Durante uma entrevista coletiva na última sexta-feira (18), a Organização Mundial da Saúde (OMS) reforçou a necessidade de estudos mais robustos para que, enfim, o papel do antiparasitário no contexto da Covid-19 fique claro. De acordo com Soumya Swaminathan, cientista-chefe da OMS, ainda não há estudos clínicos de alta qualidade conduzidos sobre o papel da ivermectina, tanto na prevenção quanto no tratamento da doença, e são necessárias mais evidências antes de alguma mudança de entendimento.

"Estudos observacionais às vezes dão dicas de algo que pode estar acontecendo, especialmente quando se está em um nível populacional onde há muitas intervenções sendo feitas, mas o que se precisa são estudos bem desenhados que provem essas hipóteses, então nós recomendamos mais pesquisas. O júri ainda está decidindo", explicou a representante da entidade.

A OMS mantém um Grupo de Desenvolvimento de Diretrizes que avalia todas as pesquisas sendo conduzidas ao redor do mundo, e divulga cada nova recomendação. A última, publicada no fim de março, indicava o uso da ivermectina apenas dentro de estudos clínicos, nos quais há controle e observação de equipes de saúde. Segundo Maria Van Kerkhove, líder técnica da Covid-19 para a OMS, novas avaliações estão sendo feitas, e atualizações poderão ser divulgadas em breve.

Nesta quarta-feira (23), a Universidade de Oxford anunciou o início de um estudo clínico com 5 mil participantes para avaliar a ação da medicação contra a Covid-19. A pesquisa englobará voluntários no Reino Unido que tenham tido o diagnóstico da Covid-19, ou sintomas da doença, nos últimos 14 dias.

Os participantes serão divididos em dois grupos: um receberá a medicação, e o outro manterá o tratamento padrão do Reino Unido, focado no alívio dos sintomas. Cada voluntário, no entanto, saberá em qual grupo está e, ao longo de 28 dias, deverá responder à equipe do estudo, de forma presencial ou a distância, como está se sentindo diariamente.

Não se trata de uma pesquisa "padrão-ouro" na medicina baseada em evidências, mas poderá colaborar com dados e sustentar novas decisões de tratamento, de acordo com Chris Butler, professor da universidade e um dos coordenadores do estudo, em nota divulgada no site. "Ao incluir a ivermectina em um estudo de larga-escala como o PRINCIPLE, nós esperamos gerar evidências robustas para determinar quão eficaz o tratamento é contra a Covid-19, e se há benefícios ou danos associados ao uso", explica.

Por que a ivermectina foi pensada para a Covid-19?

A ivermectina não é uma medicação nova. Desenvolvida na década de 1970 pelo pesquisador japonês Satoshi Ōmura e pelo irlandês William C. Campbell – que inclusive ganharam o Nobel de Medicina em 2015 pelo achado –, a medicação tem ação contra parasitas e vermes, como os causadores da oncocercose (também chamada de "cegueira dos rios"), da estrongiloidíase intestinal, filariose (elefantíase), ascaridíase (lombriga), escabiose (sarna) e pediculose (piolho).

Mas por se tratar de uma medicação de amplo espectro ou multialvo, que pode ser indicada para uma variedade de doenças, ela passou a ser testada contra outros microrganismos, entre eles os vírus. Zika vírus, dengue, chikungunya e mesmo a febre amarela foram submetidas à medicação, que demostrou uma ação antiviral em pesquisas in vitro (em laboratório) e em animais.

Ao verificar o achado em seres humanos, porém, a ação antiviral não se manteve. "A ivermectina, como inúmeros outros medicamentos, foi testada. E viram que, in vitro, tinha algum sucesso contra alguns vírus, como o da dengue, por exemplo. Mas, em humanos, não mostrou um benefício, então foi abandonado", explica Sandra Farsky, farmacêutica, professora titular da Universidade de São Paulo e presidente da Associação Brasileira de Ciências Farmacêuticas.

Isso não impediu que, em 2020, quando a pandemia do Sars-CoV-2 começou a se disseminar, a ivermectina estivesse na lista das possíveis medicações contra a nova doença. Em abril, pesquisadores da universidade Monash, na Austrália, divulgaram que, em experimentos in vitro, a ivermectina se mostrou capaz de eliminar o coronavírus em 48 horas.

"Esse estudo foi realmente o estopim para posicionar a ivermectina contra a Covid-19. Mas esse foi o primeiro estudo, e isso suscitou outras perguntas e outras pesquisas. Tanto no sentido de entender melhor a interação da ivermectina com o vírus, e até mesmo no sentido de propor como tratamento experimental para a Covid", explica Fábio Rocha Formiga, doutor em Farmacologia pela Universidade de Navarra, pesquisador do Instituto Aggeu Magalhães/Fiocruz (PE) e professor da Universidade de Pernambuco.

Estudos da ivermectina contra a Covid-19

Depois do anúncio dos pesquisadores na Austrália, mais estudos foram conduzidos. Na plataforma ClinicalTrials.gov, que reúne as pesquisas clínicas do mundo todo, há atualmente 71 estudos registrados que avaliam a ação da ivermectina no contexto da Covid-19. Destes, 46 ainda estão ativos, em fases de recrutamento de participantes ou anteriores a esta etapa. Outros 23 já completaram as pesquisas.

"Lá no ClinicalTrials nós percebemos que, até agora, os ensaios clínicos direcionados para a ivermectina em Covid-19 são com um número muito reduzido de pacientes, ou são ensaios não controlados, não cegos ou não blindados, e alguns são até observacionais, que não possuem um grupo controle. É muito complicado fazer uma generalização de observação sem um grupo controle", destaca o pesquisador.

Os estudos que vão dar as respostas que ainda estão faltando sobre a ivermectina precisam atender a alguns critérios, como:

  • Número grande de participantes (a quantidade depende da etapa da pesquisa clínica, mas para verificar a eficácia de uma medicação, por exemplo, na fase 3, espera-se milhares de pessoas);
  • Distribuídos entre grupos de forma randomizada (aleatória);
  • Um dos grupos não deve receber a medicação em teste para servir de controle, ou comparação. Este grupo poderá receber outra medicação, para fins comparativos, ou mesmo uma substância placebo, ou nenhum tratamento além do padrão;
  • Nenhum dos participantes, ou da equipe de pesquisadores, deve saber quem está em qual grupo (o chamado duplo-cego). Essa medida reduz o viés da pesquisa de que, sabendo que está tomando a medicação e não placebo, a pessoa ache que está "melhorando".

A somatória deste tipo de estudo, chamado de ensaio clínico randomizado, controlado e duplo-cego (RCT), vai servir de base para as chamadas meta-análises. "[As meta-análises são] uma síntese reprodutível e quantificável desses dados para dar uma visão geral. Infelizmente, até hoje, essas meta-análises e o monitoramento do grupo de trabalho [da OMS] não apontam para uma evidência ainda muito robusta da ivermectina como um fármaco anticovid", diz Formiga.

O especialista alerta, no entanto, que isso não significa que a ivermectina deva ser deixada de lado. "Significa que precisamos aguardar mais resultados dos ensaios clínicos com maior número de pacientes, com os controles adequados, e com evidências científicas mais consolidadas", reforça.

Por que a demora?

Embora para alguns medicamentos já haja um posicionamento mais claro das entidades de saúde, como a OMS, o FDA americano e a Agência Europeia para Medicamentos, para a ivermectina ainda se pede por mais estudos. E por quê? Uma das respostas é a incerteza da dosagem.

Os pesquisadores da Austrália que primeiro apontaram para uma possível ação da medicação contra o Sars-CoV-2 testaram diferentes concentrações até acharem aquela que trazia os melhores resultados. O problema, de acordo com Marcelo Beltrão Molento, professor de Parasitologia da Medicina Veterinária da Universidade Federal do Paraná, é que, ao transpor essa concentração da placa de Petri para os seres humanos, a dosagem aumenta.

"Se você transportar essa concentração usada em células para uma dose em seres humanos, isso vai para 5 mil vezes a dose que é recomendada terapeuticamente hoje para matar parasitas", explica o professor, que pesquisa a ação da ivermectina em animais e em seres humanos há 25 anos. "A ivermectina é muito segura se a pessoa tomar a dose prevista na bula. Se você tem 60 kg e toma os comprimidos para tratar parasitas uma vez por ano, é uma coisa. Agora, quando a pessoa dobra ou triplica a dose, e ingere a cada 15 dias, esses estudos não foram feitos e não se sabe quais são os riscos a médio ou longo prazo", completa Molento.

São justamente essas respostas que muitas pesquisas estão se concentrando agora, segundo explica Fábio Formiga, pesquisador da Fiocruz. "Antes do teste de eficácia, precisamos definir o nível de segurança das doses. Muitos desses ensaios clínicos estão, inicialmente, avaliando a toxicidade do doseamento. Para aumentar a dose, precisamos esperar os resultados de estudos. Alguns já saíram, mas mesmo afirmando que as doses maiores podem ser seguras, foram feitos com um número pequeno de pacientes".

De acordo com Sandra Farsky, presidente da Associação Brasileira de Ciências Farmacêuticas, a demora também é própria do desenvolvimento da Ciência, que deve ser respeitada. "Não temos dados imediatos porque os dados confiáveis demoram para sair. Você olhar para um grupo pequeno, como 80 pessoas, e ver uma diferença estatística, deve-se questionar se é isso mesmo. Há tantos outros fatores que podem ter levado a isso. Pode ser que [a ivermectina] funcione, mas para termos certeza absoluta é preciso ter estudos maiores. Mas isso demora, não dá para ter uma resposta imediata. A resposta imediata que funciona é a vacina, e a população precisa se vacinar", reforça.

Estudos recentes

Das pesquisas mais recentes publicadas sobre a ivermectina no contexto da Covid-19, nenhuma oferece as respostas para os principais questionamentos: é eficaz e pode ser usada de que jeito contra o Sars-CoV-2?

Publicado no início de junho no periódico EClinicalMedicine, um estudo conduzido na Argentina avaliou a ação antiviral de altas doses da ivermectina em 45 pacientes hospitalizados em quatro hospitais diferentes. Os pacientes foram divididos em dois grupos: um recebeu a ivermectina durante cinco dias, e o outro, o tratamento padrão.

O objetivo era verificar a diferença na carga viral presente nas secreções respiratórias entre o primeiro e o quinto dia. Foram também avaliadas as concentrações da ivermectina no plasma dos pacientes.

Nos resultados, os pesquisadores não viram, de forma geral, diferença na redução das cargas virais dos dois grupos, mas perceberam que havia diferença em um grupo de pacientes: aqueles com maiores concentrações da ivermectina no plasma. "A ivermectina é um fármaco com um perfil farmacocinético [atividade do fármaco no organismo] muito variável. Ela alcança níveis do organismo muito variados em virtude de determinadas populações, em função de características do paciente. Os argentinos avaliaram isso", explica Formiga.

Segundo o especialista, a dieta do paciente, por exemplo, pode alterar os níveis sanguíneos da ivermectina. O que os pesquisadores viram foi que, a medicação tomada em jejum, ou com o estômago cheio, trouxe diferenças nos resultados. "Esse não é um efeito único da ivermectina. Pode acontecer com outros medicamentos. Seja uma questão de farmacocinética ou da capacidade da medicação em agredir o estômago", explica.

Outra publicação recente saiu no periódico Journal of Antibiotics, que faz parte do grupo Nature, e se propôs a listar os mecanismos de ação da ivermectina. Trata-se de uma revisão de outras pesquisas, na qual os autores descrevem como a medicação é composta e como a ação antiviral foi observada em outros estudos. Como conclusão, os autores destacam que a ivermectina mereceria atenção para mais pesquisas clínicas.

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