Uma das candidatas à vacina contra Covid-19, produzida pela Pfizer e BioNTech, recebeu aprovação pelo Reino Unido nesta quarta (2)
Uma das candidatas à vacina contra Covid-19, produzida pela Pfizer e BioNTech, recebeu aprovação pelo Reino Unido nesta quarta (2).| Foto: National Cancer Institute/Unsplash

A aprovação, pelo Reino Unido, do uso emergencial da vacina contra a Covid-19 produzida pelas farmacêuticas Pfizer e BioNTech já seria uma boa notícia contra a pandemia. Outro detalhe, porém, torna o anúncio ainda mais significativo, especialmente para a comunidade científica: trata-se da primeira vacina liberada que utiliza o RNA mensageiro como estratégia contra agentes infecciosos, como o Sars-CoV-2.

"Essa estratégia de vacina de RNA vem realmente revolucionar o nosso sistema de vacinas. Se for comprovado que ela vai trazer um benefício real, isso vai revolucionar a maneira de produzir vacinas porque, exceto a manutenção em baixas temperaturas, a produção é realmente muito mais significativa", explica Jordana Coelho dos Reis, microbiologista do Laboratório de Virologia Básica e Aplicada do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais.

Dentre as 48 candidatas às vacinas contra a Covid-19 que estão sendo testadas em seres humanos, seis utilizam a estratégia de RNA. Além da Pfizer, a vacina da Moderna também se encontra na fase 3 dos testes clínicos. Na sequência, estão os imunizantes produzidos pelas seguintes empresas:

Como funciona?

Embora o objetivo de toda e qualquer vacina seja 'ensinar' o sistema imunológico a se defender, há diferentes estratégias que podem ser usadas. As mais clássicas são a atenuação e a inativação, nas quais o microrganismo é atenuado (tornado mais fraco, sem a capacidade de gerar a doença) ou inativado ("morto") por processos físico-químicos. Essas estratégias estão presentes em vacinas como a do sarampo e da febre amarela, no caso do vírus atenuado, e da gripe (influenza), no caso do vírus inativado.

A estratégia de RNA vem sendo estudada há anos, mas ainda não havia nenhuma vacina aprovada - apenas alguns medicamentos. De forma clara, ela funciona da seguinte maneira, segundo explica Elena Caride, gerente do Programa de Vacinas Virais da Bio-Manguinhos / Fiocruz:

O RNA mensageiro (RNAm, ou ácido ribonucleico) é a molécula que entrega para as células uma mensagem contida no DNA (ácido desoxirribonucleico). Essa mensagem é a receita de fabricação de proteínas.

"No caso da vacina contra a Covid-19, usa-se a sequência de RNA que codifica para o gene da proteína Spike, da espícula do vírus. Na hora em que é feita a vacinação com o RNA mensageiro, a célula o identifica como um RNA, traduz aquela mensagem para a proteína Spike, que então é apresentada para o nosso sistema imunológico. O sistema imune vai detectar e criar uma resposta imunológica contra essa proteína, criando os desejados anticorpos", detalha Caride.

Pontos positivos e negativos

Por não precisar cultivar o vírus, como é feito nas estratégias de atenuação e inativação por exemplo, a técnica de RNA tende a ser mais ágil na produção. "É uma tecnologia de processo completamente sintético. Quando fala em síntese química de apenas um RNA, você simplifica o processo e isso traz um grande avanço, porque consegue, pela sequência genética do patógeno, sintetizar e produzir a vacina em curto prazo", destaca Elena Caride, da Bio-Manguinhos / Fiocruz.

A desvantagem, porém, é a instabilidade do RNA. "Como a mensagem dentro da célula deve ser transitória, não pode permanecer o tempo todo, o RNA tem, por natureza, uma instabilidade. Essa é a desvantagem que vem sendo discutida com relação à vacina da Pfizer, pela necessidade em conservar em temperaturas muito baixas", diz Caride.

Isso, porém, pode ser mais bem controlado. De acordo com a doutora em neurociências Mellanie Fontes-Dutra, há a possibilidade estabilizar tanto a fita de RNA quanto as nanopartículas que agem como "veículos" para entregar o RNA às células. As diferenças nesses escolhas podem explicar por que a vacina da Moderna, por exemplo, não exige temperaturas tão baixas quanto a vacina da Pfizer, que precisa de armazenamento em uma temperatura média de 70°C negativo.

"Não temos muitas informações sobre isso porque ainda é uma tecnologia nova, e provavelmente deve ter uma solicitação de patente envolvida. Por isso não sabemos porque uma vacina conseguiu a estabilização e outra precisa de temperaturas mais baixas", explica a especialista, que é uma das coordenadoras da Rede Análise Covid-19, colaboradora do Instituto Questão de Ciência, e é membro do Infovid.

Ainda assim, a Pfizer já anunciou que está estudando uma logística de entrega e armazenamento que seja mais factível, sem a necessidade de ultrafreezers. "Especialmente agora que o Reino Unido aprovou, vai ser mais fácil ver como se dará a logística da vacinação lá, e isso vai fornecer algumas informações sobre como ocorrerá em outros lugares. Embora essa vacina não esteja no plano do Ministério da Saúde, existe a possibilidade de negociação com os estados", lembra Fontes-Dutra.

Vale destacar, também, que a vacina da Moderna, que usa da mesma tecnologia e não necessita da mesma temperatura de armazenamento, faz parte do consórcio Covax, da OMS, do qual o Brasil participa.

Tempo incerto

Ainda que todas sejam aprovadas, uma das dúvidas que não será respondida tão logo é o tempo de imunidade que as vacinas conferem. De acordo com Elena Caride, pelas características próprias da estratégia de RNA, porém, doses de reforço de tempos em tempos podem ser necessárias.

"Possivelmente veremos uma duração de imunidade curta e talvez sejam necessárias múltiplas vacinações para manter a imunidade contra esse patógeno. Ainda é muito prematuro afirmar qualquer coisa das vacinas de RNA, mas espera-se, pela característica delas, que tenham uma imunidade mais curta. Só com o tempo vamos poder avaliar", explica.

O que se sabe até o momento são os resultados de eficácia compartilhados pelas farmacêuticas. A Pfizer anunciou, em meados de novembro, que os dados finais da fase 3 dos testes clínicos apontam uma eficácia de 95%. Já a Moderna destaca, nos resultados preliminares da mesma etapa, que a eficácia do imunizante ficou em 94,5%.

Fake news

A tecnologia é nova e, por isso, é comum gerar desconfiança. Mas, falar que a vacina de RNA pode modificar o DNA humano, isso está errado, segundo explica Jordana Coelho dos Reis, microbiologista.

"É muito importante frisar isso: nem essa, nem qualquer outra vacina produzida tem a capacidade de mudar o nosso genoma. Não são usadas estratégias como a que realiza o vírus do HIV, que se integra ao nosso genoma. As vacinas não têm nada disso", alerta a especialista.

O RNA mensageiro que é entregue pela vacina, vale lembrar, também é produzido pelas células humanas, para a produção de proteínas para o nosso corpo, como a insulina - hormônio responsável pela captação do açúcar no sangue.

"Quando a gente vai produzir alguma proteína, isso é feito pelo RNA mensageiro. As nossas células produzem esse RNA o tempo todo. O que a vacina faz é usar esse RNA para que as células codifiquem a proteína do vírus, e o sistema imunológico aprenda a nos proteger", reforça Jordana.

O mesmo processo é feito pelo vírus, quando desenvolvemos uma doença. A diferença para as vacinas, porém, é que todo o processo é controlado - sem o desenvolvimento dos sintomas da doença.

"[As vacinas entregam ao corpo] apenas os componentes que induzem a resposta imunológica, não os componentes que induzem a doença. Mesmo que a vacina entregue o vírus inteiro, inativado ou atenuado, ele não teria o maquinário para alterar o nosso DNA, pois são necessárias enzimas específicas para isso, que não estão presentes em nenhuma das vacinas que estão sendo estudadas", explica.

A especialista destaca, ainda, a importância de a população se vacinar, assim que tiver um imunizante disponível no país. "Na possibilidade de se vacinar, não perca essa oportunidade. A Covid-19 não é uma 'gripe comum'. Há pessoas que mesmo tendo poucos sintomas estão com sequelas até hoje. A Covid-19 é uma síndrome que pode deixar sequelas", alerta a microbiologista.

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