Terceirizando para si o reconhecimento que os filhos conquistam, pais narcisistas expõem crianças e jovens a situações de pressão.
Terceirizando para si o reconhecimento que os filhos conquistam, pais narcisistas expõem crianças e jovens a situações de pressão.| Foto: Kazuo Ota/Unsplash

Todo pai ou mãe deseja que o seu filho se destaque por suas habilidades, e é claro que o seu coração se enche do orgulho diante dos êxitos do filho. Mas e quando o sucesso das crianças e jovens se torna uma obsessão e os pais passam a servir-se da visibilidade dos filhos para suprir as suas próprias necessidades de atenção? É o que pode acontecer com pais narcisistas que, sem conseguir ser admirados pelas próprias habilidades, terceirizam para si o reconhecimento que os filhos conquistam.

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O narcisismo é um amplo espectro de comportamentos caracterizados pela busca de admiração e aprovação constantes. Quando chega ao ponto em que esse inchaço do ego começa a afetar a funcionalidade da pessoa no trabalho ou socialmente, pode ser diagnosticado psicologicamente como o transtorno de personalidade narcisista. Se os filhos passam a ser instrumentalizados por esse desejo de atenção, então as consequências para eles podem ser graves.

“Quando os pais são narcisistas patológicos e fazem uso dos talentos ou imagem de seus próprios filhos para obter lucros e vantagens, o impacto emocional negativo é uma conta que será paga pelos filhos”, afirma Leninha Wagner, doutora em psicologia e em neurociências. “Estar submetida desde cedo a situações de extrema pressão e a ambientes para os quais o seu cérebro ainda não está preparado para lidar pode trazer uma série de problemas para a criança no futuro”.

Graves consequências

Segundo a especialista, o estado de tensão, ansiedade e estresse crônico provocado pelas expectativas de fama, sucesso e perfeição depositadas sobre a criança pode levar à estafa mental e física e a um estado de depressão que pode impactar todo o seu desenvolvimento. “Pais que depositam em seus filhos a responsabilidade de rentabilizar ou monetizar através de aparições de impacto que gerem fama e sucesso, invariavelmente podem transmitir aos filhos a sensação de carregar o peso de ser a ferramenta de resolução dos problemas de uma família”, exemplifica Leninha.

Já a psicóloga Ana Caroline Bonato da Cruz chama a atenção para um aspecto nem sempre visível dessas tensões: “É interessante observar que o movimento que pais narcisistas fazem é: aplaudir e enaltecer para os outros; criticar e rebaixar no privado. Para quem ‘não é de casa’ eles expõem as habilidades ou a imagem dos filhos como maravilhosas, perfeitas, sublimes... No entanto, em casa a validação não vem na mesma intensidade. Os aplausos e holofotes são substituídos por críticas duras, relatos de insuficiência e busca descontrolada pela perfeição”.

“A conexão imposta pelo pai ou mãe narcisista com o filho é tão intensa que a criança vai aprendendo de forma distorcida sobre quem é. Os interesses dos filhos são desvalidados, assim como as necessidades particulares desta criança”, continua a psicóloga. Isso afeta a autoestima da criança, o conceito que ela tem de si e o desenvolvimento da sua autonomia. A sua relação com os pais fica condicionada por aquilo que ela faz: os pais a amam apenas quando ela age de determinada maneira, e não do jeito como realmente são.

Autoconhecimento

Dessa maneira, procurar examinar-se a fim de reconhecer se esse tipo de comportamento está presente na relação com os filhos é fundamental. “Nem sempre é tarefa fácil nos percebemos em todas as camadas que nos compõem, mas é preciso se questionar sobre os próprios excessos, ouvir as queixas, reclamações e sugestões das pessoas próximas, membros da família e amigos íntimos, e refletir se tangenciam a verdade de seu comportamento, para então buscar ajuda profissional na psicoterapia”, indica Leninha.

“Questione-se: ‘Estou fazendo isso por mim ou pelo meu filho? Isso vai agregar no desenvolvimento dele? Isso ajudará meu filho em quê? Qual é a expressão do meu filho quando ele faz isso? Ele gosta? Ele se diverte?’”, recomenda Ana Caroline, apontando que, como estamos falando de uma psicopatologia – o transtorno de personalidade narcisista –, quando pais e mães notam em si essa busca por atenção às custas dos seus filhos, a procura por opiniões qualificadas e profissionais é fundamental.

Tudo isso é importante sempre no exercício da parentalidade, mas é ainda mais urgente na cultura narcisista que as redes sociais consolidaram. Expor os filhos para satisfazer as próprias necessidades de atenção não é uma novidade – como atestam os velhos concursos de beleza infantis –, mas com as dinâmicas virtuais se firmaram como uma plataforma perfeita para receber a aprovação social instantânea que os pais narcisistas precisam. “No entanto, em troca de um ganho imediato, instantâneo e fugaz, há perdas concretas e danos emocionais por tempo indeterminado”, afirma Leninha.

Um risco concreto

A superexposição de crianças e adolescentes na internet por parte de seus pais é um fenômeno típico da sociedade da informação em que vivemos e tem até nome: sharenting (do inglês share, compartilhar, e parenting, o exercício da parentalidade). “Os perfis de bebês sob a administração dos responsáveis seriam um exemplo. Ali se coloca em situação de risco a imagem, a dignidade, a segurança e a saúde desses sujeitos”, explica a pesquisadora Letícia Prazeres, mestra em direito e professora da Idea Escola de Direito.

“Quando tratamos de uma exposição em demasia de crianças e adolescentes, pelos próprios pais ou responsáveis, sob a justificativa da ação fazer parte da rotina familiar, é preciso ter em mente que não se trata apenas de fotos e sim de dados e localizações que, se veiculadas da forma errada, podem colocar crianças e adolescentes em situações de risco”, diz Letícia.

Além das consequências psicológicas para as crianças, casos que cheguem a acarretar problemas de maior severidade podem ter até mesmo consequências judiciais. “Em situações extremas e de grave violação na esfera de garantias infanto-juvenis, pode-se falar inclusive na perda do poder familiar”, sublinha a pesquisadora.

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