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Na casa da curitibana Maria Donizeti Marques da Silva, Irmã Dulce tem lugar cativo. No pequeno altar montado no fim do corredor, ela exibe uma capelinha com uma foto da religiosa baiana, que trouxe da última viagem a Salvador. “Sempre que acordo ou vou dormir, olho para ela, rezo e peço que interceda por mim”, conta Zeti, como é conhecida. Ao lado da freira recém-canonizada pelo Papa Francisco, estão Nossa Senhora Aparecida e Santa Rita de Cássia – as outras santas de devoção da catequista.

Zéti Marques da Silveira, devota de Santa Dulce dos Pobres | Foto: Jonathan Campos Zéti Marques da Silveira, devota de Santa Dulce dos Pobres | Foto: Jonathan Campos

Zeti nasceu na Bahia e conta que desde pequena ouvia falar da freirinha franzina que cuidava dos pobres. “Ela sempre foi muito famosa no Nordeste. Atendia quem precisava e qualquer um que cruzasse o caminho dela”, lembrou. Na última passagem pela terra onde os parentes ainda moram, em julho deste ano, pode presenciar, também, a admiração dos conterrâneos pela, agora, santa brasileira. “Nós fomos conhecer a obra de Irmã Dulce e ficamos encantados. O local virou um centro de peregrinação e acolhida. A santidade dela exala naquele lugar”, afirmou.

De saúde frágil, Irmã Dulce dedicou a vida a atender principalmente os doentes (leia mais abaixo). E foi justamente quando o corpo precisou de amparo que a religiosa Izaura Souza Cordeiro, outra moradora de Curitiba, pode experimentar o “poder” da obra milagrosa da intercessora. “Eu morava em Salvador e, na época, precisei fazer uma cirurgia de emergência no Hospital Santo Antônio [fundado por Irmã Dulce]. Naquela ocasião, pude ver de perto toda a atenção que é dada aos humildes. Eles trabalham com o coração. Tenho uma admiração enorme por essa causa”, disse à Gazeta do Povo.

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Para a freira da Ordem das Irmãs Catequistas Franciscanas, os prodígios de Dulce vão muito além dos dois casos reconhecidos pela Igreja e que permitiram a santificação do “anjo bom da Bahia”. Segundo ela, “o hospital, por si só, com toda história e a forma de atender as pessoas, já faz milagres diariamente pelo povo baiano”, garantiu.

História

Nascida em 1914, em Salvador, Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes (nome de batismo de Irmã Dulce) começou a manifestar interesse pela vida religiosa ainda na adolescência. Aos 13 anos de idade, já atendia doentes no portão de casa, no bairro de Nazaré. Apaixonada por futebol e torcedora fanática do Esporte Clube Ypiranga, em 1933, logo após a sua formatura como professora, ingressou na Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus. No mesmo ano foi morar no Convento de Nossa Senhora do Carmo, em São Cristóvão (Sergipe), onde recebeu o hábito azul e branco que a tornou ilustre e adotou, em homenagem à mãe falecida, o nome de Dulce.

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O trabalho assistencial em comunidades carentes teve início, em 1935, sobretudo em um conjunto de palafitas que se formou na parte baixa do bairro de Itapagipe, na capital baiana. Percebendo a necessidade dos muitos operários que moravam na região, Irmã Dulce criou um posto médico e mais tarde, fundou a União Operária São Francisco – primeira organização católica do estado dedicada à classe trabalhadora.

A missão se estendeu até o ano de 1992, quando o corpo de Irmã Dulce já não respondia mais à grande vontade de ajudar. “A extenuante rotina de trabalho e os anos de penitência pessoal cobraram um preço alto de sua saúde. Ao final da vida, seus pulmões operavam com menos de um terço da capacidade e sua morte foi precedida por um ano de muita dor em uma UTI instalada em seu quarto no convento”, escreveu o jornalista Graciliano Rocha, na biografia “Irmã Dulce, a Santa dos Pobres”.

Último recurso a pobres e doentes, a religiosa baiana ficou conhecida como “Madre Teresa do Brasil” por teólogos que estudaram sua obra e sua vida como parte do processo de canonização aberto pelo Vaticano. “Irmã Dulce antecipou em muitas décadas a chegada das mulheres a posições de liderança em um tempo em que a sociedade relegava um papel subalterno às mulheres. Ela assumia riscos e tinha enorme capacidade de tirar do papel grandes empreendimentos num mundo dominado por homens, sem se deixar dominar por eles”, relatou Rocha em outro trecho do livro.

Declarada santa

Canonizada, no domingo (13), pelo Papa Francisco, Irmã Dulce será chamada de Santa Dulce dos Pobres, em justa referência às obras de caridade e assistência social que desenvolveu ao longo de 78 anos. Ela é considerada a primeira santa brasileira nascida no país, já que Madre Paulina (canonizada em 2002) nasceu na Itália e se mudou para cá somente aos 10 anos de idade.

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A causa da santificação da “Mãe dos Pobres” começou no ano 2000, apenas oito anos depois da morte dela – um dos processos mais rápidos da história da Igreja Católica. Em abril de 2009, o Papa Bento XVI reconheceu as “virtudes heroicas” de Dulce Lopes Pontes, autorizando oficialmente a concessão do título de “venerável” à religiosa. Esse é o segundo dos quatro passos no caminho para a declaração de santidade (serva de Deus, venerável, beata e santa). Já a beatificação de Irmã Dulce ocorreu em maio de 2011, quando o primeiro milagre atribuído a ela foi divulgado: a recuperação de uma mulher que teve um sangramento grave interrompido subitamente, sem intervenção médica.

O primeiro milagre de Dulce

A técnica administrativa sergipana, Cláudia Cristina dos Santos, hoje com 50 anos, havia dado à luz ao segundo filho, em 11 de janeiro de 2001, quando a hemorragia começou. Ela sangrou sem parar durante 18 horas e foi submetida a três cirurgias de emergência, que não surtiram efeito. Desenganada pelos médicos, a família então chamou um padre que, em vez de dar a unção dos enfermos, resolveu fazer uma corrente de oração por Cláudia pedindo a intercessão de Irmã Dulce. Instantaneamente, o fluxo de sangue cessou.

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O milagre dela passou por três etapas de avaliação da Congregação para a Causa dos Santos do Vaticano. Segundo o médico Sandro Barral, um dos integrantes da comissão científica que analisou o caso, “ninguém conseguiu explicar a melhora tão rápida em uma condição tão adversa”.

O segundo milagre de Dulce

Mas foi um segundo milagre atribuído à Irmã Dulce que permitiu a canonização da freira. Trata-se da cura de um músico baiano, de 51 anos, que voltou a enxergar. José Maurício Moreia tinha 23 anos quando soube que perderia a visão por causa de um glaucoma agressivo. O tratamento, que durou 10 anos, não foi suficiente para impedir que o nervo ótico (responsável pela comunicação com o cérebro) se degenerasse. Na virada do ano de 1999 para 2000, ele ficou completamente cego e permaneceu assim por 14 anos.

“No meio de uma crise inflamatória dos olhos num momento de muita dor peguei a imagem de Irmã Dulce, levei até os meus olhos e pedi que ela aliviasse meu sofrimento. Algumas horas depois comecei a voltar a enxergar. Ela deu a mim muito mais do que clamei, pois nunca pedi para voltar a enxergar porque sabia que era impossível”, disse em entrevista ao Vaticano News, o site oficial de notícias da Santa Sé.

Legado

Um dos maiores complexos de saúde do país, a instituição filantrópica Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), que abriga o Hospital Santo Antônio (onde Irmã Izaura do início da reportagem foi atendida), é resultado de mais de 10 anos de peregrinação da freira baiana atrás de um local onde pudesse abrigar necessitados e enfermos recolhidos das ruas de Salvador.

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A Osid tem origem no ano de 1949, quando – sem ter para onde levar 70 doentes – a santa brasileira pediu à sua superiora que pudesse abrigá-los no galinheiro do convento. “Sem dúvida o grande legado de Irmã Dulce é a obra social”, disse Sérgio Lopes, assessor corporativo da entidade.

Segundo ele, um projeto essencialmente puro, mas trabalhoso de manter. “Nossa receita é 100% SUS e são muitos atendimentos. Em 2018, fechamos o ano devendo R$ 11 milhões”, revelou ao citar os 3,5 milhões procedimentos ambulatoriais realizados anualmente pela instituição.

Festa e gratidão

Em meio à toda euforia que vive a cidade de Salvador por conta da canonização de Dulce, a Gazeta do Povo conseguiu falar com o arcebispo da cidade, Dom Murilo Krieger, que disse passar por um momento de alergia e surpresa. “Alegria porque entendemos que essa canonização é um presente imenso de Deus para nós e para todo o Brasil. Já a surpresa, porque ainda não conseguimos entender perfeitamente a extensão do que está acontecendo, envolvendo alguém que aqui nasceu, viveu e se santificou. Parece que Irmã Dulce não era de uma família concreta, mas membro de todas as nossas famílias, tão próxima de nós a sentimos”, revelou.

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