Júlio Saito| Foto:

O que aconteceu com o cérebro do Bryan? Esse foi o questionamento que incentivou a empresária e mãe Sandra Sobral a deixar seu trabalho, estudar neurociência e fundar o Instituto Geração Amanhã (IGA). Depois de adotar o garoto em um abrigo do Paraná e perceber as sérias dificuldades cognitivas e emocionais que ele apresentava por ter crescido longe do ambiente familiar, a empresária decidiu trabalhar em prol de 50 mil crianças do Brasil que vivem nas condições em que seu filho viveu.

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Essas crianças são retiradas de suas famílias no Brasil por sofrerem abusos, negligência ou abandono, e quase 95% delas são mantidas em abrigos enquanto a Justiça decide se voltarão para casa ou seguirão para adoção. “Só que esses processos demoram muito e a criança vai crescendo sem uma família que a ame e a ajude a se desenvolver. Isso traz sérios danos neurológicos”, afirma Sandra, que percebeu essas consequências no comportamento do pequeno Bryan, adotado aos quatro anos.

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“Meu filho tinha muita dificuldade para se socializar e não sabia nem diferenciar as cores porque nunca alguém havia parado para ensinar isso a ele”, lamentou. Além disso, “tinha muita dificuldade de interação social por não ter conhecimento do que era um supermercado, uma farmácia ou uma igreja”.

Essa falta de interação com a sociedade prejudica o cérebro da criança e tem sido corrigida em países da Europa e da América do Norte por meio do acolhimento familiar, que oferece a guarda provisória dessas crianças com medidas protetivas a adultos que possam protegê-las por até 18 meses. O sistema chegou ao Brasil em 2006, mas ainda engatinha: menos de 10% das crianças fora da guarda de sua família biológica vivem com famílias acolhedoras no país.

O objetivo de Sandra é mudar esses números. Como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) diz que a inclusão “em programas de acolhimento familiar terá preferência em relação ao acolhimento institucional” (art. 34, parágrafo 1º), o Instituto Geração Amanhã trabalha para expandir esse serviço no Brasil. As ações ocorrem há três anos e a presidente da instituição explicou sua importância em entrevista à Gazeta do Povo.

“Meu filho tinha muita dificuldade para se socializar e não sabia nem diferenciar as cores porque nunca alguém havia parado para ensinar isso a ele”, lamentou. 

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Quando você decidiu fundar o IGA?

Tudo começou depois que eu adotei o Bryan, em 2015, e tive muitas dificuldades. Ele foi retirado da sua família e ficou quatro anos em abrigos porque existia a chance de retornar para a mãe. Só que esse tempo que passou sem o convívio familiar trouxe sérias consequências, então deixei meu antigo trabalho para estudar a respeito dos problemas neurológicos que a institucionalização traz à criança e incentivar o programa Família Acolhedora no Brasil por meio do instituto.

Os especialistas citaram algum dano cognitivo que o Bryan sofreu?

Não foi possível saber com precisão porque não temos o mapeamento do cérebro dele, mas sabemos que o tempo no abrigo trouxe consequências como perda cognitiva, dificuldades motoras, de linguagem e, principalmente, na questão de comportamento e construção de vínculos afetivos. Percebemos que ele tinha dois anos de déficit em relação a outras crianças. Ficar no abrigo prejudicou o cérebro do meu filho.

Em que situações você percebia que havia algo errado?

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Ele era muito agressivo, batia nos colegas da escola, mordia os primos e não conseguia se relacionar com outras crianças. Também tinha dificuldade de interação social por não ter nenhum conhecimento do que era um supermercado, uma farmácia ou uma igreja.

Percebemos que ele tinha dois anos de déficit em relação a outras crianças. Ficar no abrigo prejudicou o cérebro do meu filho.

Teve algum fato que te marcou?

Muitos, mas principalmente saber que ele não tinha informações básicas do dia a dia aos quatro anos de idade. Para você ter uma ideia, ele não sabia o que era uma geladeira e colocava tênis, cobertor e outras coisas no refrigerador por nunca ter visto um, já que na casa dele não tinha e, no abrigo em que estava, a cozinha ficava sempre fechada. Além disso, meu filho tinha muita dificuldade para se socializar e não sabia diferenciar as cores porque nunca alguém havia parado para ensinar a ele o que é azul, por exemplo.

Como uma família acolhedora poderia ter ajudado o Bryan?

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Explicando coisas simples como o que é uma geladeira. Ao levar essas crianças e adolescentes para casa, a família acolhedora não precisa se preocupar em dar brinquedos, por exemplo, mas em ajudá-las a ter uma vida em família com afeto. E, para isso, basta levar na padaria, na farmácia, na igreja, passear na pracinha, na casa dos primos e estar com eles.

Por que as crianças não recebem isso nos abrigos?

Porque lá existem vários funcionários que trabalham em turnos e mudam muito, então as crianças não conseguem construir vínculos. E é importante ressaltar que vínculo não se estabelece pelo fato de eu te ver agora, mas somente com algo estável, duradouro e constante.

E como isso afeta a parte neurológica da criança?

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É nos primeiros anos de vida que as conexões e sinapses são feitas e mantidas no cérebro, e o afeto é fundamental para que essas sinapses sejam criadas com qualidade. O problema é que o abrigo prejudica isso porque recebe até 20 crianças e os cuidadores não conseguem dar atenção a cada uma. Se um bebê der sua primeira risada lá, por exemplo, ninguém conseguirá olhar porque os funcionários vão segurar quem estiver precisando mais naquela hora. Assim, a criança que não recebe afeto e estímulos nos primeiros anos apresentará menos conexões neurológicas e seu cérebro será diferente para o resto da vida.

Há estudos que comprovam isso?

Sim. Uma pesquisa coordenada por pesquisadores da Universidade de Harvard por 20 anos analisou o cérebro de vários órfãos da Romênia e provou que o abandono, a negligência, a falta de estímulo e de socialização entre 0 e 6 anos — e mais gravemente de 0 a 3 — trazem traumas emocionais e danos neurológicos, alguns irreversíveis. De acordo com essa pesquisa, as crianças que não receberam afeto tiveram transtornos psiquiátricos, dificuldades de aprendizagem e aumento de esquizofrenia, bipolaridade e suicídio. Claro que a situação dos abrigos da Romênia é muito mais precária que a nossa, mas mostrou que o cuidado individual e a formação de vínculos na primeira infância são essenciais.

É nos primeiros anos de vida que as conexões e sinapses são feitas e mantidas no cérebro, e o afeto é fundamental para que essas sinapses sejam criadas com qualidade. 

Como uma família pode se colocar à disposição do programa Família Acolhedora para auxiliar essas crianças?

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As famílias que se predispõem a acolher provisoriamente uma criança entram em contato com o fórum da cidade e passam por uma capacitação para saber que não poderão adotá-la porque, pela lei brasileira, quem acolhe não adota. Só que o fato de estar ciente de que terá que construir o vínculo e depois desapegar não deve desanimar a família, porque esse é o papel dela no desenvolvimento da criança. É esse apego que a ensinará a criar vínculos e a ajudará a ter mais segurança.

E como a criança lida com a quebra desse vínculo?

Imagine que você tem um filho e uma avó doente. Será que você vai privar a criança de conhecer a avó porque sabe que a idosa morrerá? Não! Ela vai conhecer a avó porque não será um vínculo negativo, mas uma experiência positiva que ninguém tirará dela. É assim com a família acolhedora. Então essa perda não vem como trauma, mas como uma evolução. Essas pessoas passam a fazer parte da história da criança.

A família acolhedora fica com a criança por quanto tempo? E como é a adaptação nesse período?

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São 18 meses e as crianças se adaptam muito bem porque são extremamente carentes. Se você visitar um abrigo, verá que os pequenos grudam na sua perna e os adolescentes ficam pedindo: “Tia, me leva”. Eles são loucos para ter uma família e muitos não querem voltar para seus pais porque sofriam muito em casa. Então, ainda que cada um tenha sua personalidade, todos fazem o possível para se adaptar à família porque se doam para isso, em qualquer idade.

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Para finalizar, como o Bryan está hoje, quatro anos após ser adotado?

Os anos que passamos com ele foram difíceis, mas o vínculo familiar tem muito poder e hoje, com oito anos, ele já melhorou 80%. Agora passará por uma avaliação psiquiátrica e seguirá com acompanhamento contínuo porque não sabemos que outros resquícios o tempo institucionalizado deixou.

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