“Os excluídos não nos enfraquecem: nos animam a ir para a frente”
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A Igreja Católica costuma celebrar o mês de outubro como Mês Missionário. Para este ano, porém, o Papa Francisco determinou a sua celebração como Mês Missionário Extraordinário, a fim de comemorar os 100 anos da carta apostólica Maximum illud, de Bento XV, e enfatizar mais uma vez a dimensão missionária da Igreja. Aqui no Acreditamos no Amor, comemoraremos este mês com uma série de entrevistas com missionários enviados para diversas partes do mundo para anunciar Deus-Amor.

Entrevista

Pe. Nello Ruffaldi| Missionário do Pontifício Instituto das Missões Exteriores (PIME). Nascido em Castell’Azzara, na Itália, em 1942, desembarcou no Brasil em 1971. Desde então trabalhou no Amapá e no Pará. Ele faleceu poucas semanas depois de nos conceder esta entrevista, em Belém do Pará.

Como o senhor discerniu sua vocação missionária? O que mudou entre as expectativas de missão que o senhor tinha como seminarista para hoje, depois de décadas de missão?

Eu nasci na Itália em 1942, durante a Guerra, e desde adolescente vivi numa região que, mesmo sendo meio comunista, vermelha, era de gente muito boa. Senti o desejo de ser padre e entrei no seminário. Lá no seminário regional, perto de Roma, que reunia seminaristas de várias dioceses, a gente recebia visita do pessoal do PIME, combonianos, xaverianos, missionários da Consolata. Eles falavam das missões. Então eu disse: “Aqui na Itália tem tantos padres, está sobrando, e esses outros lugares são lugares sem padres, sem cristãos. Não, eu sou chamado a fazer um montão de conversões. Acho que quero ser missionário”. Então fiquei com esse desejo dentro de mim, sem pressa. Falei com meu diretor espiritual, iniciamos um discernimento, com o reitor, enfim, demorou bastante, até a filosofia. Eu já devia ter 19 ou 20 anos. Aí ficou certo que minha vocação era missionária, mas tinha outra dificuldade.

Falei com o bispo, porque é ele que tinha que me enviar. O bispo era um franciscano que tinha sido missionário na China durante 20 anos, e lá o lugar de missão da ordem dele era perto daquele do PIME. Porém, apesar de ter sido missionário, ele disse não. “A nossa diocese precisa de padres. Você fica aqui”. Então eu disse para Jesus: “Olha, eu quero ter certeza que tu me chamas, que não é ideia minha. Se és tu que me chamas, muda a cabeça do bispo, porque se ele não permitir, eu não vou”. Nem tinha falado com meus pais – tem que ser uma coisa de cada vez, senão era muita tragédia. Mas nada, nada, nada: o Espírito Santo não conseguiu mudar a cabeça do bispo. Porém, mudou o bispo. O bispo franciscano foi transferido, depois de tanto tempo, e veio um de Como, no norte da Itália. Eu estava estudando teologia e era assistente no seminário menor, e aí estava lá e chegou o novo bispo. E quando ele estava para entrar no palácio, eu, atrevido, disse: “Excelência, preciso falar com o senhor”. “Ah, é?” “É”. “Amanhã vou no seminário. Você está por lá?” “É lógico.” Ficou marcado.

No dia seguinte, ele me perguntou: “Qual é o teu problema?” Eu contei e ele questionou por que não querem que eu vá. Respondi que na diocese achavam que faltariam padres e então eu deveria permanecer aqui. E aí ele me disse: “Se você conversou com seu diretor, reitor, fez um discernimento, e tudo isso durou anos, isso é seguro. Se é assim, pode pegar sua mala e sair, pois para cada um que vai, Deus manda dez.” E isso é verdade: depois disso, só da minha cidade entraram cinco no seminário, e fazia dezenas de anos que não entrava ninguém. Falei: “Já? Eu sou assistente aqui, tenho algumas tarefas”. E ele me disse: “Não, a gente encontra outro. Primeiro, vai embora para a tua missão”. Então eu fui, e aí foi difícil falar com os pais, era o último obstáculo. Mas eles foram muito respeitosos. Choraram, choraram, eram contra, mas me deixaram ir. Entrei em contato com o PIME. O diálogo com o novo bispo aconteceu em outubro e, começando o novo ano, os padres do PIME vieram me buscar de carro. Foi tudo de última hora, mas foi uma providência. Esse bispo muito aberto que me ajudou morreu em agosto seguinte. Fui me encontrar com o novo bispo da diocese. Apresentei-me e ele disse: “Se é do PIME, não é da diocese”. Respondi: “Mas eu vou em nome da diocese”. E ele disse: “Se fosse eu, não teria dado permissão”. “É por isso que o Espírito Santo mandou outro”, respondi. Mas depois ele me ordenou padre e cobrei dele: “O senhor é bispo para toda a Igreja, não só da diocese”. Eu tive coragem de cobrar.

No PIME, senti no seminário uma abertura grande, tive experiências de conversar com pessoas que eram pobres, sem-teto. E aí me apaixonei pela África. Tinha sido destinado, com um ano de antecedência, para a África, junto com outro padre. Só que aí o PIME nos mandou para trabalhar em Sotto il Monte, a cidade natal de João XXIII. Ele doou para o PIME a casa onde nasceu e ela foi tranformada num seminário. Eu estava tomando conta daquele seminário. Depois de 3 anos, fui falar com o superior geral e disse que nós dois estávamos prontos para ir para a África. Aprofundamo-nos na cultura, na geografia, nas línguas e tudo o mais. Mas ele disse no fim: “Na África já tem padres o suficiente neste momento. Não estão pedindo mais. Se vocês querem ir para a missão, a única opção é o Brasil. Pensem e me respondam em 15 dias”. Perguntei se era no Sul ou na Amazônia. “Amazônia”. Rezamos, rezamos e falei com o outro padre: “Dante, fomos destinados para a África, mas lá não precisa mais de missionários e sim no Brasil. Deus não pode mandar gente a um lugar que não precisa! É sinal que está mandando para outro canto. Vamos ao Brasil”.

A viagem ao Brasil, de navio, durava 14 dias. Na Itália estava 17°C negativos. Chegamos ao Rio, estava 40°C. Desembarcamos em Santos e fomos para São Paulo fazer a documentação, que naquela época era mais simples apesar da ditadura. Em seguida, fomos para Assis, para aprender português na universidade do PIME. Ficamos três meses. Daí fomos a Macapá, e o bispo, um grande bispo, Dom José Maritano, disse pra mim: “Nello, eu tenho uma paróquia que precisa de padre no Oiapoque, na fronteira com as Guianas. Não tem estrada, não tem nada. Só avião da FAB”. Eu disse: “Sim, estou disposto. Não conheço nada aqui: onde o senhor me mandar, eu vou”. Aí teve a grande surpresa: no Oiapoque – o município tinha entre 7 e 8 mil habitantes – a metade da população era indígena. E estava nas aldeias, não na cidade: eram quatro povos indígenas. Eu nem sabia quem era os índios. Comecei a tomar conta do interior e depois de um ano o padre que trabalhava comigo adoeceu. Fiquei sozinho e às vezes ficava mais de um ano sem ver outro padre. Comecei com todo entusiasmo, visitando o interior, visitando todas as aldeias e conhecendo pela primeira vez os costumes. Eles falavam duas, três línguas diferentes.

Em 1973 fui a Brasília: o bispo me pediu para representar a diocese num encontro das missões com a Funai e depois num encontro missionário da Igreja. Ali conheci missionários de todo o Brasil que trabalhavam com os índios. De uma vez só conheci missionários do norte ao sul, fiz amizades e aí comecei a ver a realidade. Já tinha nascido, havia um ano, o Cimi, o Conselho Indigenista Missionário. Naquela época havia no Cimi gente de todas as tendências, a favor ou contra o governo, mas já estava se delineando a postura do Cimi em favor dos povos indígenas. Comecei a fazer parte do Cimi, logo depois de um ano de missão. A 2ª Assembleia Nacional do Cimi foi em 1974, na Missão Cururu, no sul do Pará, a quase 3 mil quilômetros do Oiapoque. A FAB nos deu cobertura e nos levou – fui junto de dois caciques de lá. E aquilo abriu completamente meus olhos: a terra não estava demarcada; ali não tinha problema porque não tinha estrada, não tinha interesse econômico – mas a estrada iria ser aberta. Os índios abriram os olhos. Voltamos e fizemos uma assembleia geral, só com os caciques: poucas pessoas, mas representativo.

Aí o pessoal abriu os olhos. A luta começou e em 1977 já estava demarcada a terra: primeira grande vitória. Mas em 1975 fui escolhido para iniciar a missão entre os povos indígenas no Amapá e no Pará. Aí foi outro discernimento com meu bispo: “Dom José, aqui não tem nenhum padre além de mim e o trabalho é grande demais”. Eu já tinha iniciado as comunidades de base, para que elas se reunissem mesmo sem padres e celebrassem a Palavra de Deus. Tinha feito um trabalho interessante. O bispo me disse: “Nello, faz como quiser, mas eu acho que Deus está te chamando para esse trabalho. Se tu quiseres ir, vai com a minha benção”. E o Oiapoque? “Não se preocupe, a diocese vai ter que dar um jeito. Vai primeiro onde Deus te chama”.

O que o senhor aprendeu com os indígenas vendo a espiritualidade deles?

Bom, no começo eu tinha as minhas prevenções. Educado na Itália, com tanta teologia, pensava: “Isso é superstição, isso não vale, tem que ser direitinho na vida, o homem tem que ter uma só mulher – tinha dois caciques que tinham duas – será que eu batizo, será que não”… Porém eu vi que apesar daquilo que eu achava serem contradições, eles tinham Deus no coração. Eu nunca levei nada para comer quando ia até eles: sempre me receberam em suas casas, compartilhando aquilo que eles comiam. Aí, entrei no Cimi, e lá descobrimos, devido à situação dos índios, que a boa notícia começa da má notícia. Pode falar de Jesus, mas antes, se a pessoa está com fome, tem que comer. Então, os índios não tinham terra, não tinham escola, não tinham educação, não tinham saúde, não tinham assistência, eram desprezados em sua própria cultura.

Então me engajei nisso tudo. O que determinou foi que em 1976, quando estava na universidade em Goiânia fazendo um curso de antropologia, um colega meu, Rodolfo, um salesiano, foi morto por defender a terra dos bororos. Foi morto junto com os índios. Seu sangue se misturou ao deles. Depois de alguns meses, outro padre, um jesuíta que era coordenador do Cimi no Mato Grosso, foi morto também, no dia de Nossa Senhora Aparecida. Aquelas mortes determinaram a minha vontade. Disse a mim mesmo: “Eu vou trabalhar nesta causa por toda a minha vida. Este sangue não vai ser perdido”. E até hoje estou trabalhando.

Agora, com os índios, o que a gente aprendeu? Bem, nós somos cristãos, batizados, somos Igreja, bonitinho, não é? Mas os índios sentem a presença de Deus em todo canto. Não é só lá no céu: é nas árvores, nos animais, na mata. Deus está sempre presente. Você diz, quando eles te dão comida: obrigado. Eles respondem: “Obrigado não, padre. Obrigado a Deus: ele é que dá comida para nós”. Eu poderia te contar os casos de mutirão de solidariedade, de partilha, que tem entre eles. Ninguém passa fome, se acaba a minha roça e acaba a minha farinha e o outro ainda tem, ele diz: “Vai lá, pega a mandioca que quiser, faz farinha, metade é minha, metade é tua”. Parece que a mulher não tem espaço entre eles, mas nas assembleias, antes dos homens decidirem, eles vão conversar com as mulheres. Então descobri que eles, mesmo não tendo o Evangelho, eram mais cristãos do que eu. Eles praticamente me evangelizaram.

Redescobri junto com eles a rever a minha cultura, a relativizá-la, a ver que há outras maneiras de pensar, mesmo no que diz respeito à religião. Eu tinha sido ensinado que a cultura indígena não presta, que é do demônio. Mas percebi que o Evangelho é mais próximo da cultura indígena do que da nossa mentalidade europeia. Eles são mais cristãos, mesmo não sendo batizados. Então me veio uma nova maneira de pensar, de agir, também a respeito do catolicismo. Não posso julgá-los segundo os nossos esquemas. Eu digo sempre aos missionários: “Fique calado, aprenda. Antes de falar de Jesus, se deixe evangelizar”.

Então todo esse contato com os indígenas modificou sua ação pastoral, seu jeito de catequizar, etc.?

Lógico! Eu vivo numa sociedade branca. Quando vou à Itália, digo a eles: “Não são os índios que precisam de vocês, somos nós que precisamos dos índios”. Porque deles aprendemos uma maneira diferente de ver. Por isso muda a forma de ver a catequese, a moral, as leis. Jesus disse que a lei é amar a Deus e amar ao próximo. Isso relativiza muitas coisas, pois muitas das nossas leis não vêm do Evangelho e sim da nossa cultura. Então, se vêm da nossa cultura, a deles é diferente.

O senhor convive diariamente com uma série de feridas de nossa sociedade: drogas, exploração, tráfico de pessoas, prostituição. Como obter forças para se manter em pé em meio a tanto sofrimento?

No Oiapoque, além do trabalho com os índios, nós iniciamos uma missão para resgatar as pessoas do tráfico humano. Vimos depois que tinha o problema das drogas, da exclusão. Vou sempre para o Oiapoque e para outras áreas do Pará e do Amapá, mas a sede da nossa revista, desde 1979, é em Belém. Lá na praça, há prostitutas, gente de rua, drogados. As prostitutas são as nossas amigas: nos cumprimentamos, nos abraçamos, é uma piada atrás da outra. Enfim, nelas descobrimos coisas muito boas. Elas te abençoam. Já pensou? “Que Deus te abençoe, padre”. Acho que é aí, nessas pessoas que vivem na rua, que não têm nada, que Deus vem ao nosso encontro. Os excluídos não nos enfraquecem: nos animam a ir para a frente.

A Igreja na região amazônica possui incontáveis exemplos de missionários que doaram a sua vida nela. Porém, parece que o grande desafio hoje é caminhar rumo a um maior protagonismo à população nativa, para que a Igreja amazônica tenha um rosto com sua própria identidade. Como o senhor vê isso? Quais caminhos a Igreja deve percorrer para caminharmos nesse sentido? 

São duas coisas: a primeira é a conscientização que vem do contato com uma cultura diferente. Com esse contato, passo a ter consciência também da própria cultura. Aprendo a apreciá-la, conhecendo os pontos positivos e os negativos. Entendo que a minha cultura é a minha, e a do índio é outra. As duas culturas não são iguais: cada uma tem sua maneira de se relacionar com Deus, de se organizar em sociedade, de se relacionar com a natureza. Então é preciso um diálogo. O trabalho de evangelização passa pela inculturação: nós relativizamos a nossa cultura, apreciamos a cultura do outro e, junto com eles, traduzimos o Evangelho na linguagem deles. Os próprios Evangelhos foram inculturados: nenhum foi escrito de maneira objetiva e sim a partir da situação da própria comunidade, ressaltando aquilo que era importante para aquela comunidade. Marcos, Mateus, Lucas, João: um Evangelho é diferente do outro. E não é só o Evangelho. Na liturgia, por exemplo: usamos no batismo o óleo dos catecúmenos, porque antigamente a pessoa se ungia antes de lutar – tem que contar toda a história das Olimpíadas. Ou o óleo do Crisma, porque os profetas derramavam óleo sobre os reis e por aí vai. É muito bonito o que está escrito nos salmos sobre isso, mas isso se dá dentro de uma outra cultura que não tem nada dos elementos indígenas. Por isso a necessidade de inculturação: saber que a nossa linguagem é relativa, que precisamos de tempo e que somos ignorantes nesse caminho.

O segundo ponto é: acho que eu, italiano, nunca vou fazer inculturação indígena. É preciso fazer algo de que a Igreja hoje é carente. Para mim é uma lacuna grave. A Igreja, até agora, no trabalho pastoral entre os índios, depende de pessoas de fora, estrangeiros. Por quê? Porque os índios não querem ser celibatários, não estudaram no seminário, então não podem ser padre – e quem batiza, casa, reza missa é o padre. Porém o padre só vai uma ou duas vezes por ano. E os índios ficam sem Palavra de Deus, sem Eucaristia, sendo que são comunidades católicas. Então o importante seria ajudar os índios para se tornarem autores de sua própria história, em todas as áreas, também no campo religioso. Mas nesse campo ainda são carentes, porque mesmo que tenham estudado teologia não podem ser padres. Entre eles ainda se dá uma Igreja muito dependente. Não reconhecemos a maioridade para eles, porque partimos não da sua cultura mas das normas do nosso direito canônico. As nossas leis, que são boas para onde nasceram, não podem ser universais. Então nesse sentido, estamos trabalhando para prepará-los, dar-lhes um instrumental, ensinar bíblia e liturgia, para que amanhã eles façam a própria inculturação.

Eu tenho esperança de que, apesar do atraso, já temos possibilidade, dentro do nosso regional, para preparar ministros que possam batizar e oficiar casamentos. Mas ainda não podem ouvir confissões nem presidir a missa. Fui a uma comunidade dos tiriós, a convite do bispo, na fronteira com o Suriname. Um índio catequista dizia: “Padre, faz 30 anos que trabalho aqui. Anuncio a Palavra, dou catequese. Eu, porém, não posso fazer um batizado. Sou apenas um coroinha do padre. Aí vem a igreja evangélica que pega uma pessoa, meu vizinho, que nunca ia para a igreja, leva embora, volta três meses depois, é pastor, batiza, casa, faz o culto, recebe o dízimo. Então, frente ao nosso povo, ele é uma pessoa importante, e eu não sou nada”. Ou superamos isso ou vamos perder todos, pois ainda precisa que o padre estrangeiro vá às aldeias, senão não tem missa, não tem nada.

No Oiapoque, menos de 2% da população vai regularmente à igreja aos domingos. Então se Jesus deixou as 99 no redil para ir ao encontro da ovelha perdida, nós não podemos ficar com a única ovelha no redil e esquecer as 99 que estão fora. E às vezes temos cobranças, até dos bispos, para a missão ajudar as paróquias. Mas a missão é para a Igreja em saída, para os mais marginalizados, para as pessoas que as paróquias não alcançam. Quando o tema do Sínodo da Amazônia fala de procurar caminhos novos de evangelização, é nessa linha: ajude a comunidade a celebrar a liturgia, a ser autônoma, deixe-a mais responsável, e libere os missionários para ir ao encontro dos que estão fora.

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Um agradecimento enorme ao amigo Bruno Gambarotto, parceiro na produção destas entrevistas.

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