"Este é o significado do Natal, Charlie Brown"
"Este é o significado do Natal, Charlie Brown"| Foto:

É muito difícil que O Natal de Charlie Brown, o clássico desenho animado dos Peanuts, não tenha feito parte da sua infância. A cena central da animação, em que Linus recita o trecho do Evangelho de Lucas que conta o nascimento de Jesus, é algo que hoje parece impensável. O que você talvez não saiba é que em 1965, quando o desenho foi produzido, também parecia – até para os envolvidos na produção.

Na verdade, pouca coisa parecia dar certo na animação – a primeira com os personagens, que àquela altura já estrelavam uma tira de jornal havia 15 anos. A produção tomou uma série de decisões ousadas, a maioria delas defendidas intransigentemente pelo criador dos personagens, Charles Schulz. “Deus do céu, a gente matou os Peanuts” – chegou a afirmar Bill Melendez, o diretor da animação, ao ver pela primeira vez o desenho finalizado, apenas dez dias antes de ir ao ar.

Schulz, no começo dos anos 1980. Photo courtesy Orange County Archives. Schulz, no começo dos anos 1980. Photo courtesy Orange County Archives.

Naquela época, decisões como banir a claque e convocar crianças como dubladoras não eram nada convencionais. A trilha sonora, centrada no jazz, e o ritmo quase meditativo da animação não pareciam nem um pouco atrativos para o público infantil. O tema tampouco: um garoto – Charlie Brown – que se pergunta por que o Natal o entristece e que credita isso ao consumismo. A cena bíblica, então, parecia um ultraje.

Schulz queria, porém, que o foco do programa – encomendado pela CBS, com o patrocínio da Coca-Cola, como um especial de Natal – fosse o verdadeiro sentido do Natal. Evidentemente, Melendez estava errado em sua avaliação do desenho – ao contrário do animador Ed Levitt, que lhe disse: “É o melhor especial que você já fez na sua vida. Esse programa vai ser veiculado por cem anos”.

O especial foi, de fato, aclamado pela crítica. Ganhou o Emmy de melhor programa infantil, abriu o caminho para dezenas de outras animações com os personagens e marca presença todos os anos na grade da programação natalina nos Estados Unidos desde então. Em 2015, em um especial pelos 50 anos do desenho animado, It’s Your 50th Christmas, Charlie Brown! – que também ganhou o Emmy no ano seguinte – o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, chamou o desenho de “uma das mais amadas tradições natalinas do nosso país”.

Schulz, falecido em 2000, foi um cristão de muita profundidade e, sobretudo, um homem em busca. A cena de Linus recitando o Evangelho – diretamente do texto da King James Version – era uma condição sua para que o desenho animado fosse realizado. “Se não fizermos isso, quem vai fazer?”, questionou ele a Melendez, que se opunha à cena. Embora à primeira vista esse aspecto não salte aos olhos, a sua jornada espiritual transparecia no trabalho de Schulz.

A fé de Schulz

Mais de 560 das quase 17,8 mil tirinhas que Schulz escreveu e desenhou contêm alguma referência religiosa, espiritual ou teológica. Para entender a dimensão disso, é só constatar que a clássica cena em que Lucy retira a bola de futebol americano quando Charlie Brown tenta chutá-la está presente em apenas 61 tiras. “Eu prego nessas tiras, e reservo a mim os mesmos direitos de dizer o que quero dizer que um ministro no púlpito”, disse Schulz certa vez.

O tom do cartunista, porém, nada tinha de proselitista, fundamentalista ou mesmo piegas. Pelo contrário, ele criticava “aqueles quadrinhos religiosos rasos”, que traziam menções óbvias a Jesus, como as tirinhas de Family Circus ou Dennis o Pimentinha. “Não suporto isso. Dá para desenvolver diabetes lendo aquilo, não dá?”, dizia.

De família luterana, Schulz abraçou pessoalmente a fé cristã pouco depois de voltar do serviço militar na II Guerra Mundial. Tornou-se um leitor voraz de comentários teológicos – encheu sua bíblia, que leu três vezes de capa a capa, de anotações escritas a mão nas margens das páginas. Por 10 anos, foi professor da escola dominical em uma igreja metodista. Pelo fim dos anos 1980, porém, disse em uma entrevista que já não frequentava mais a igreja e se descrevia como um “humanista secular”.

— Ouvi dizer que você está escrevendo um livro de teologia. Espero que você tenha um bom título. — Eu tenho o título perfeito… “Você já imaginou que você pode estar errado?”

“Você pode elaborar uma piada diariamente, mas não estou interessado em simplesmente contar piadas. Eu estou interessado em produzir uma tira que diga algo e comente alguma coisa sobre as coisas importantes da vida”, disse Schulz certa vez. Seja no episódio da produção do desenho animado, seja na sua busca refletida nas tirinhas, o cartunista parece ter se mantido fiel a esse objetivo.

“Deus era muito importante para ele, mas de uma maneira muito profunda, muito misteriosa”, afirmou a sua segunda esposa, Jean Forsyth Clyde, em uma entrevista em 2013. “Ele era um homem muito reflexivo e espiritual. Não o tipo de pessoa que diz: ‘Essa é a vontade de Deus’ ou ‘Deus vai cuidar disso’. Acho que para ele essas eram afirmações fáceis demais. Ele pensava que Deus era muito mais complexo do que isso”. De certa forma, foi um caminho apofático diante do mistério, como dá a entender uma afirmação de Schulz: “A melhor teologia, provavelmente, é não ter teologia. Apenas amai-vos uns aos outros”.

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