Uma estátua de Martinho Lutero adorna a Sala Paulo VI durante uma audiência do papa a luteranos, no último dia 13.
Uma estátua de Martinho Lutero adorna a Sala Paulo VI durante uma audiência do papa a luteranos, no último dia 13.| Foto:

No fim deste mês, o papa Francisco cumprirá sua 17ª viagem apostólica fora da Itália, dirigindo-se à Suécia, onde participará de uma celebração ecumênica por ocasião dos 500 anos da Reforma Protestante. Foi em 31 de outubro de 1517 que o alemão Martinho Lutero publicou as suas famosas 95 teses no castelo de Wittenberg, discutindo alguns pontos da doutrina católica.

Causou estranheza em alguns católicos que o evento seja chamado, inclusive pela Santa Sé, de “comemoração”. Além disso, há poucos dias, Francisco recebeu em audiência uma peregrinação de luteranos, ocasião em que foi disposta na Sala Paulo VI – onde costumam acontecer as audiências papais – uma estátua de Lutero. E em junho, voltando de uma viagem à Armênia, o papa disse crer que “as intenções de Martinho Lutero não fossem erradas”.

“A expressão ‘sola fide’ de Lutero é verdadeira, se não se opõe a fé à caridade, ao amor.” (Bento XVI)

Na verdade, o termo “comemoração” para se referir ao aniversário de 500 anos da Reforma já tinha sido usado pelo predecessor de Francisco, Bento XVI, em janeiro de 2011, quando recebeu em Roma uma delegação da Igreja Luterana.

“Dirijamos juntos o nosso olhar para o ano de 2017, que nos recorda a divulgação das teses de Martinho Lutero sobre as indulgências, há quinhentos anos”, disse o papa Bento na ocasião. “Nessa ocasião, luteranos e católicos terão a oportunidade de celebrar no mundo inteiro uma comum comemoração ecumênica, de defender a nível mundial as questões fundamentais, e não sob forma de uma celebração triunfalista, mas como uma profissão comum na nossa fé no Deus Uno e Trino, na obediência comum a nosso Senhor e à sua Palavra”.

Francisco visita a Igreja Luterana de Roma, em novembro de 2015. Francisco visita a Igreja Luterana de Roma, em novembro de 2015.

Bento XVI pediu um lugar importante para a oração “pelo perdão das injustiças recíprocas e pela culpa relativa às divisões”. É essa, afinal, a posição da Igreja Católica em relação aos cristãos de outras comunidades eclesiais: houve culpa tanto do lado católico quanto do lado protestante na época da separação, mas os cristãos de hoje não podem ser imputados por uma divisão do passado.

Foi o que ensinou o Concílio Vaticano II, no decreto Unitatis Redintegratio: “Comunidades não pequenas separaram-se da plena comunhão da Igreja Católica, algumas vezes não sem culpa dos homens de um e doutro lado. Aqueles, porém, que agora nascem em tais comunidades e são instruídos na fé de Cristo, não podem ser acusados do pecado da separação, e a Igreja Católica os abraça com fraterna reverência e amor” (n. 3).

Bento XVI e os luteranos

Bento XVI, o primeiro papa alemão desde o tempo da Reforma, cresceu em um país que não é hegemonicamente católico – ao contrário de todos os seus predecessores dos últimos cinco séculos, no mínimo. A convivência com luteranos desde a sua infância e principalmente no ambiente acadêmico lhe deu uma sensibilidade mais apurada para a questão da comunhão entre católicos e luteranos.

Bento XVI reunindo-se com líderes luteranos no convento onde viveu Lutero, em 2011. Bento XVI reunindo-se com líderes luteranos no convento onde viveu Lutero, em 2011.

Ele foi, aliás, o primeiro papa a visitar o ex-convento agostiniano da cidade alemã de Erfurt, onde Lutero viveu, estudou e celebrou sua primeira missa. Na ocasião, em setembro de 2011, encontrando-se com membros do conselho da Igreja Evangélica alemã, Bento XVI afirmou que estar naquele local era para ele “como Bispo de Roma, um momento de profunda emoção”.

Sobre Lutero, afirmou que a questão sobre Deus “constituiu a paixão profunda e a mola da sua vida e de todo o seu itinerário”. “‘Como posso ter um Deus misericordioso?’: tal era a pergunta que lhe atravessava o coração e estava por detrás de cada pesquisa teológica e de cada luta interior. Para Lutero, a teologia não era mera questão acadêmica, mas a luta interior consigo mesmo, que, no fim de contas, era uma luta a propósito de Deus e com Deus. ‘Como posso ter um Deus misericordioso?’ O fato que esta pergunta tenha sido a força motriz de todo o seu caminho não cessa de maravilhar o meu coração”, disse Bento XVI.

Segundo ele, “essa pergunta que inquietava Lutero – Qual é a posição de Deus a meu respeito, como apareço a seus olhos? – deve tornar-se de novo, certamente numa forma diversa, também a nossa pergunta, não acadêmica, mas concreta. Penso que este constitui o primeiro apelo que deveremos escutar no encontro com Martinho Lutero.”

No ano anterior, o papa Bento havia visitado a Igreja Luterana de Roma, onde participou de uma liturgia da Palavra em alemão, durante a qual tanto ele quanto o pastor luterano dirigiram à assembleia uma homilia. “É bom que hoje podemos rezar juntos, entoar os mesmos hinos, ouvir a mesma palavra de Deus, juntos explicá-la e procurar compreendê-la; que olhamos para o único Deus que vemos e ao qual queremos pertencer, e que, deste modo, já damos testemunho de que Ele é o Único, aquele que nos chamou a todos e ao qual, no mais profundo, todos pertencemos”, disse Bento XVI. “Penso que deveríamos mostrar ao mundo sobretudo isto: não conflitos de todo o tipo, mas alegria e gratidão pelo fato de que o Senhor nos concede isto e porque existe uma real unidade”.

Em visita à Igreja Luterana de Roma em 2010, Bento XVI escuta a homilia do pastor da comunidade. Em visita à Igreja Luterana de Roma em 2010, Bento XVI escuta a homilia do pastor da comunidade.

Quanto à teologia de Lutero, o papa Bento se referiu às suas posições algumas vezes de forma discordante, outras de forma concordante. Em uma catequese de 2008, por exemplo, disse: “A expressão sola fide [somente a fé] de Lutero é verdadeira, se não se opõe a fé à caridade, ao amor. A fé é olhar Cristo, confiar-se a Cristo, apegar-se a Cristo, conformar-se com Cristo e com a sua vida. E a forma, a vida de Cristo, é o amor; portanto, acreditar é conformar-se com Cristo e entrar no seu amor”.

Vale lembrar que, quando cardeal, Joseph Ratzinger foi um dos principais articuladores da Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação, um texto católico-luterano publicado em 1999 que atestou que ambas as comunidades eclesiais professam hoje a mesma doutrina a respeito da salvação – questão que estava no centro da Reforma Protestante.

Comemorar – fazer memória

Vale lembrar que a palavra “comemoração” tem o sentido de “fazer memória”. Nesse sentido, São João Paulo II também “comemorou” os 500 anos do nascimento de Lutero em 1983, realizando a primeira visita de um papa a um templo luterano, em Roma.

Naquele ano, o papa polonês também escreveu uma carta em que considerava o aniversário uma ocasião para “meditar, na verdade e na caridade cristã, sobre aquele acontecimento grávido de história que foi a época da Reforma”. Ele apontava ainda que as pesquisas de então já tinham contribuído para conhecer melhor a personalidade de Lutero e as complexidades da época.

“Delineou-se claramente a profunda religiosidade de Lutero, que com paixão inflamada era impulsionado pela questão sobre a salvação eterna”, escreveu São João Paulo II, que reiterou que a “ruptura da unidade eclesial não se pode reduzir nem à falta de compreensão por parte das autoridades da Igreja Católica, nem apenas à débil compreensão que Lutero tinha do verdadeiro catolicismo, anda que ambas as coisas tenham tido o seu papel”.

S. João Paulo II faz a primeira visita de um papa a uma Igreja Luterana, em 1983. S. João Paulo II faz a primeira visita de um papa a uma Igreja Luterana, em 1983.

No caso do aniversário da Reforma, portanto, não se trata de festejar, mas de não esquecer o passado e permitir que ele ilumine o presente. É o que diz, por exemplo, uma carta dos bispos católicos da Escandinávia, publicada por ocasião da data: “Os 500 anos da Reforma não podem ser festejados, mas devem ser comemorados em um espírito de arrependimento”.

Como está claro, esse arrependimento não cabe apenas aos cristãos protestantes, já que também os católicos produziram fermento de divisão nesse meio milênio – divisão que a demonização da figura de Lutero, além de ser historicamente injusta, só alimenta. Nesse sentido, a luz que o passado – e a Palavra de Deus – nos dá é a urgência de buscar uma comunhão cada vez maior, como os papas, desde o Beato Paulo VI, têm insistido, fazendo do ecumenismo uma de suas prioridades. A comunhão entre católicos e protestantes, como eles dizem, já é real e deve ser cada vez mais vivenciada, seja através da oração em comum, do serviço da caridade ou do labor teológico.

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