Bernardo de Claraval foi um abade católico francês, é a maior figura da ordem monástica dos cistercienses e foi canonizado em 1174
Bernardo de Claraval foi um abade católico francês, é a maior figura da ordem monástica dos cistercienses e foi canonizado em 1174| Foto: Felipe Koller

Este é o primeiro texto de uma série de 12 artigos que abordarão, cada um deles, a contribuição de alguma figura da história das religiões que tenha se destacado por sua experiência, sua sensibilidade e seu pensamento no que toca ao relacionamento do ser humano com o mistério de Deus. O Sempre Família publicará um texto novo dessa série a cada segunda-feira.

Quando o amor não é gratuito, é amor? A gratuidade – o dar-se somente sem esperar no amor uma recompensa que não ele próprio – é, talvez, uma das características mais difíceis de encontrar em relacionamentos afetivos. Ao mesmo tempo, é uma das mais necessárias, para que o amor não seja abusivo, mas livre, e para que não seja uma experiência nociva, mas de comunhão. Para que seja, enfim, autêntico.

Bernardo de Claraval, uma das maiores figuras europeias do século XII, examinou esse aspecto ao tratar da relação do ser humano com Deus, afirmando sem rodeios que o amor a Deus vive em um grau mais alto quando o amamos por si mesmo e não por nós. Para ele, o amor a Deus não deveria se originar nem do desejo de uma recompensa nem do medo de um castigo.

TUDO SOBRE SAÚDE ESPIRITUAL

Por um lado, dizia Bernardo, a verdadeira caridade “é uma afeição e não um contrato”. O amor a Deus não deve buscar recompensas, porque “o verdadeiro amor se contenta consigo mesmo”: “Quanto mais ama a Deus, mais a alma não busca senão Deus como recompensa de seu amor; e, se ela busca outra coisa, certamente não é a Deus que ela ama”, escreveu ele. Por outro lado, ele estava muito consciente de que “nem o temor nem o amor próprio convertem a alma. Mudam às vezes o comportamento ou o semblante, mas nunca a disposição íntima”.

Só o amor verdadeiro – isto é, gratuito – é capaz de transformar. Podemos perceber isso em nossa própria experiência, quando recordamos as ocasiões em que nos vimos inundados por um amor completamente desinteressado, capaz de nos acolher como somos, e quando constatamos como vivências como essas constituem um verdadeiro despertar dentro de nós, abrindo-nos um caminho novo de amadurecimento e de plenitude.

Bernardo, aliás, reconhecia o papel fundamental da experiência: ele dizia que Deus se revela para nós em dois livros, o das Sagradas Escrituras e o da nossa própria vida – e um oferece as chaves de interpretação para o outro. A teologia de Bernardo não pretendia ser, assim, uma teoria sobre a qual se discorre abstratamente, mas uma sabedoria que fala a partir da experiência e sobre a experiência. Quando falava da gratuidade do amor, ele a compreendia como uma possibilidade que nasce da experiência.

“O doente e o faminto são os que melhor se compadecem dos doentes e famintos, porque vivem a mesma situação”, escreveu ele. “Ninguém sente tão vivamente a miséria do irmão do que o coração que assume sua própria miséria”. É conhecendo a nossa própria fragilidade que nos tornamos sensíveis à fragilidade do outro, estendendo a nossa mão não porque uma regra manda ou porque obteremos recompensa com isso, mas porque compreendemos o seu sofrimento e lhe desejamos sinceramente o bem.

Para Bernardo estava muito claro que a experiência de amar gratuitamente não é acessível a quem não se deixou amar gratuitamente – e só é possível deixar-se amar gratuitamente quando não vemos em nós mérito para ser amados. Bernardo insistia que quem se exclui da própria miséria se exclui da misericórdia. E a experiência é uma dimensão tão indispensável nesse sentido que ele a via como uma chave de leitura para compreender o conceito fundamental do cristianismo: a encarnação – Deus que, em Jesus, assume a humanidade em si.

“O Deus invisível quis ser visto na carne e quis viver entre os humanos como humano de forma a poder responder a todos os afetos de humanos carnais, que só podem amar carnalmente”, escreveu Bernardo. Ele chegou a dizer que Cristo precisou “aprender no tempo pela experiência o que por sua natureza sabia desde a eternidade”: a ser misericordioso.

É precisamente nessa experiência de vulnerabilidade concreta que o Filho vive ao assumir a natureza humana e ao nela se entregar completamente que se revela a gratuidade do amor de Deus por nós. A gratuidade do amor não é algo a ser vivido unilateralmente: é Deus quem primeiro nos ama sem buscar nada em troca, muito antes de nós o fazermos. Seu amor é verdadeiro exatamente porque não procura seu próprio interesse, percebeu Bernardo.

É por isso que, segundo Bernardo, a grande virada da vida espiritual acontece quando entendemos que Deus não é o nosso acusador, mas o nosso advogado – “acusador”, aliás, é precisamente o que a palavra de origem hebraica “satã” significa. Não são os nossos méritos que compram o amor de Deus – tanto que a esse amor damos o nome de “graça”.

Podemos sustentar toda a nossa vida sobre esse amor. É o que Bernardo afirmou ao evocar a história da luta de Jacó com o anjo de Deus – que deixa o filho de Isaac manco: “Apoiando firmemente o pé da graça e retirando suavemente o meu, que é fraco, galgarei com segurança a escada da humildade, até que, aderindo à verdade, passe às planuras da caridade”. O amor gratuito de Deus nos liberta da nossa necessidade de nos sentirmos merecedores e, assim, nos liberta para amarmos verdadeiramente.

Para Bernardo, portanto, não há qualquer dissociação entre o amor a Deus e o amor ao próximo. Pelo contrário, segundo ele, a autenticidade da nossa experiência de Deus é comprovada pela prontidão com a qual socorremos o nosso próximo – já não como uma forma de provarmos o nosso valor ou de acumularmos pontos em nosso currículo, mas como a manifestação do reconhecimento de uma humanidade comum, imersa conosco nas mesmas águas límpidas da gratuidade do Deus-Amor.

Bernardo de Claraval (1090-1153) foi um abade católico francês. É a maior figura da ordem monástica dos cistercienses. Canonizado em 1174, foi proclamado doutor da Igreja em 1830. Suas principais obras são o seu Tratado do amor de Deus, Sobre os graus da humildade e da soberba e seus 86 sermões sobre o Cântico dos Cânticos.

Felipe Koller é repórter do Sempre Família e professor de Teologia. É mestre e doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

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