Ideia dos kits nasceu durante uma consulta ao dentista e foram necessários cinco dias para que a professora começasse as visitas
Ideia dos kits nasceu durante uma consulta ao dentista e foram necessários cinco dias para que a professora começasse as visitas| Foto: Arquivo pessoal

Há pouco mais de quatro meses a professora Maura Silva deu os últimos beijos e um abraço apertado em cada um dos seus 57 alunos de duas turmas do terceiro ano do ensino fundamental, na Escola Municipal Frei Vicente do Salvador, em Padre Miguel, Zona Oeste do Rio de Janeiro. O hábito, que se repetia dia após dia nos últimos anos, teve de ser subitamente interrompido com a chegada da pandemia da Covid-19 e a paralisação das atividades presenciais.

Desde então o tempo foi passando e a saudade foi apertando, até que chegou o momento em que ela se tornou insuportável. “Com essa pandemia, foram quatro meses de isolamento e só olhando a carinha deles pela telinha. Só conversando com eles pelo computador. Estávamos com muitas saudades”, diz Maura. “E já estava me fazendo muito mal esse distanciamento de não poder olhar todo dia, abraçar todo dia. E ficar com eles todos os dias”, lamenta.

A educadora então teve de usar de toda a criatividade que era ensinada aos estudantes em classe para pensar em uma maneira segura e eficaz de poder olhar pessoalmente para cada um daqueles olhinhos que brilhavam durante as festas que ocorriam em sala de aula, com a exibição de filmes, pipoca e bolo quentinho preparado pela própria “tia Maura”. Então, no início de julho veio um repente durante a consulta ao dentista: "Porque não criar kits de proteção e promover esses encontros individualmente?"

Com a ideia fresca na cabeça, Maura mais do que rápido sacou o celular de bolso e começou a pesquisar fornecedores para entregar capas e luvas protetoras na sua casa em no máximo 24 horas. Outras dezenas de máscaras foram confeccionadas por ela mesma em tempo recorde. “Do consultório já fui até a loja comprar o tecido para as máscaras e arrumar tudo para poder fazer as visitas”, recorda-se.

O plano em prática

Cinco dias depois Maura percorreu 43 endereços de três bairros da capital carioca em uma empreitada que durou cerca de sete horas para que ela pudesse, finalmente, sentir o carinho de cada um de seus alunos, com idades entre 8 e 9 anos. A surpresa e emoção estampada no rosto das crianças, pais e mães deixou clara a importância do momento para todos os envolvidos. A sensação desses abraços, segundo ela, é difícil de descrever.

“É tão difícil falar disso. É amor. Eu fico procurando palavras como a gente pode descrever o amor. É aquele choro que você tem querendo ficar com a pessoa agarrada. Foi como se tivessem recarregado minha bateria, como se tivessem revigorado minha energia”, relatada ela, em tom emocionado. Na ocasião ela não conseguiu encontrar 14 alunos, que não estavam em casa, mas já reagendou novas datas para não deixar ninguém de fora.

A trilha sonora deste reencontro emocionante foi composta pelas músicas ouvidas durante suas aulas e tocada pelo carro de som contratado por pela professora, que não mediu esforços para tornar a ocasião um momento único não apenas para os estudantes, mas também para ela. “Algumas crianças começaram a ouvir a música e foram correndo pra porta”, recorda-se. “A saudade que me motivou. Saudade de tocar, de olhar, de mostrar para eles que mesmo distante nós estávamos juntos o tempo todo. Ainda estávamos conectados, a nossa relação estava preservada".

Além da surpresa inesperada, as crianças ainda foram presenteadas com sacolas de doces e outros mimosas lembranças, deixando a ocasião o mais próxima possível da rotina escolar. “Algumas vezes faço bolos pra gente lanchar na aula. Então levei um saquinho com balas e doces e disse que aquilo era para eles não se esquecerem das nossas festas, das nossas brincadeiras, dos nossos momentos felizes e que logo vai passar”, diz ela, que fez questão de reforçar o recado para cada um dos alunos. “Espera só mais um pouquinho. Aguenta só mais um pouquinho que já já a gente vai estar no nosso cantinho de novo”.

O registro desse dia tão especial ficou por conta dos pais das crianças, que fizeram questão de fotografar e filmar o momento do encontro. “Eu mesma não levei meu celular. Não fiz foto, não fiz vídeo, não fiz nada, porque eu queria que fosse um momento muito meu e deles”, diz Maura.

Segurança reforçada

A professora garante que a atitude foi motivada pela emoção, sem, entretanto, deixar de lado a segurança dela e das crianças. Maura entrou em contato com todos os pais de alunos para explicar os passos da visita e pedir autorização. Foram realizadas ainda pesquisas sobre como manusear os itens do kit de maneira segura, sem oferecer riscos de contaminação.

“Confeccionei, lavei, higienizei, embalei a vácuo cada kit num saquinho. Eu mesma fiz as máscaras”, diz Maura, que teve ainda de providenciar proteção extra para estender seu gesto de carinho, que foi além de seus alunos. “Tive que fazer mais, porque eu abracei os irmãos dos meus alunos também. Eu não iria abraçar minhas crianças e ver o irmãozinho dele lá do lado”, diverte-se.

Ao encontrar cada um dos estudantes, a professora vestia a criança com os itens de proteção na presença dos pais, sempre munida do inseparável álcool em gel. Os encontros foram realizados na frente das residências e com poucas pessoas, para evitar aglomerações. Ao final de cada um deles, Maura recolhia as capas, máscaras e luvas e colocava todos os itens em um saco de lixo, que era devidamente descartado de forma segura.

Amor pela profissão

Maura faz questão de reforçar o amor que sente pela docência que, para ela, é muito mais que uma atividade profissional: é uma missão para transformar a vida de seus alunos, por meio dos valores afetivos e do olhar para o próximo.

“Minha sala de aula é meu santuário. Eu levo muito a sério isso. É um compromisso de vida para mim transformar a vida dessas crianças e ser o melhor que eu posso enquanto professora e enquanto ser humano. São questões de valores", conta Maura. "Não é só o pedagógico. Eu acredito muito na pedagogia afetiva, onde você também instrui, onde você também estabelece com essas crianças os valores afetivos, respeito, cumplicidade, caráter, o afeto pelo colega, pelas pessoas. O cuidado. O cuidar. A gente se cuida o tempo todo, todos os dias dentro da nossa sala de aula. Eu acredito muito que as crianças precisam ser felizes na escola”.

Afeto retribuído

A relação da professora com os estudantes vai muito além da sala de aula. Com 47 anos, Maura Silva dedicou 26 anos da sua vida ao magistério, sendo 19 anos no Rio de Janeiro e os últimos 12 na Escola Municipal Frei Vicente do Salvador. Isso fez com que o vínculo entre educadora e educandos fosse se fortalecendo com o passar do tempo. O carinho demonstrado com os alunos também é retribuído pelos pais.

Em 2018, ao passar por uma cirurgia, a Maura contou com a solidariedade e afeto das mães de seus alunos que se uniram para cuidar da educadora durante os dois meses de sua recuperação. “As mães dos meus alunos se juntaram e não deixaram eu contratar ninguém pra ficar na minha casa. Elas cuidaram de mim. Elas se revezavam para ir ao mercado, fazer minhas compras, lavar minha roupa, deixar meu almoço pronto e com isso as crianças acabavam vindo com elas para me dar um beijo e me ver. Elas cuidaram de mim durante os dois meses de recuperação da cirurgia”, recorda-se.

“Isso é pra você ver como é o nível da relação que a gente tem. As mães falam que são muito agradecidas, mas eu também sou muito grata, porque nada do meu trabalho teria funcionado até aqui, até agora, se a nossa parceria não fosse bacana. Se não tivesse a troca de compromisso de ambas as partes em função dos meus alunos e dos filhos de cada uma”.

Declaração de amor

Lavínia, de 9 anos, fez questão de enviar uma mensagem para a professora destacando a alegria do reencontro e relatando a emoção que sentiu em poder abraçar a “tia Maura”. “Eu amei tudo o que ela fez com a gente. E eu sinto que ela deve estar morrendo de saudade da gente. Quando ela abraçou a gente eu senti alguma coisa, eu não sei, eu senti amor. Eu senti saudades. Eu ainda senti mais saudades quando ela foi embora. Eu gostei muito de tudo que ela fez. Foi muito bonito. E eu me senti chorando por dentro, mas por fora eu não chorei. Eu amei tudo”, se declarada a pequena aluna.

Para Viviane, mãe de Lavínia, a emoção foi ainda maior por ver tanto carinho dedicado à filha. “Chorei de ver o quão grande e poderoso era aquele abraço na vida da minha bonequinha” diz. “Quando a professora me ligou falando que era para eu ir no portão que ela já estava chegando, a Lala logo reconheceu a música do carro de som e me disse: “Deve ser a tia Maura”. Ela ficou radiante com aquele gesto de amor e entendeu o quanto ela é querida. E eu fiquei ali toda besta com aquela forma de cuidar e zelar pela saúde dela”, declara Viviane. “A tia Maura é uma bênção nas nossas vidas. Ela consegue ser professora, amiga e até conselheira pra cada uma de nós mães. Só temos a agradecer por tanto amor”.

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