A mística Marguerite Porete, uma das maiores da Idade Média, foi morta na fogueira em 1310.
A mística Marguerite Porete, uma das maiores da Idade Média, foi morta na fogueira em 1310.| Foto: Divulgação/Institut Iliade

“Longeperto”: esse é o nome pessoal, íntimo, que a mística Marguerite Porete encontrou para se dirigir a Deus, depois de tanto buscá-lo por meio de muitas mediações e finalmente encontrá-lo mais perto do que imaginava, no despojamento de si mesma, na nudez e no nada da própria alma — e, assim, encontrá-lo como a mais pura liberdade e a mais profunda paz. Liberdade e paz com as quais Marguerite enfrentou o processo inquisitorial movido contra sua única obra, O espelho das almas simples, que culminou com a sua morte na fogueira.

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Vamos lançar um olhar sobre o caminho percorrido por Marguerite em sua interioridade. Na tentativa da prática da virtude, o que a mística descobriu foi a sua limitação: “Sou a soma de todo o mal, pois contenho em minha própria natureza o que a maldade é”. Assim, se Deus é a bondade total, “é necessário que eu tenha a totalidade de sua bondade antes que minha maldade possa ser estancada”, “pois qualquer coisa menor do que a totalidade da abundância de sua bondade não poderia preencher o abismo de minha própria maldade”.

O reconhecimento da maldade que há dentro de nós não é, porém, a porta do desespero, mas a da libertação. É quando “a Alma considera que Deus é, ele por meio de quem todas as coisas são, e ela não é, se não é onde todas as coisas são”. Assim, o reconhecimento da vontade livre que existe dentro de nós se transfigura: “Encerrada dentro daquela que não é senão na maldade está a livre vontade do ser de Deus, que é o ser, e que quer que aquele que não tem ser tenha ser por meio desse dom” — do dom da liberdade.

Antes de ser reconhecida como dom, a vontade não pode fazer nada a não ser tender para o nada, e para “menos que o nada”. Para Marguerite, é necessário reconhecer esse nada, para então abrir os olhos para a vontade livre como um dom e, portanto, como algo que nos remete ao doador, a Deus. A vontade livre, assim, é reconduzida pela Alma a Deus, é devolvida livremente, “lá onde teve a sua origem, sem reter nada de seu, para realizar a perfeita vontade divina”.

É aí que se ingressa no “país da liberdade”, no “país da nutrição”: essa doação mútua, o dom dado e devolvido da liberdade, realiza na Alma a perfeição e “a transforma na natureza do Amor, que a deleita com uma paz total e a satisfaz com o alimento divino”.

Aí a Alma “não se preocupa mais com a guerra da natureza”, em que a vontade sempre perdia, porque a natureza se inclina para o mal — não se trata de pessimismo: nossa natureza tende à autopreservação e não se importa em conquistá-la à custa dos outros, ferindo-os, ou seja, operando o mal. Agora, porém, “sua vontade foi, com despojamento, recolocada no lugar de onde foi tomada”, depois de ter vivido “fora de seu ser”.

Em síntese, a Alma se reconhece como nada e, quando “vê seu nada por meio da abundância da compreensão divina”, então “ela é tudo”. Há uma queda quando a Alma se enxerga como nada, uma queda “tão profunda, se ela caiu corretamente, que a Alma não pode se erguer de tal abismo”. Mas não é isso que ela deve fazer: ao contrário, “deve aí permanecer”, pois só sendo nada a Alma “se vê sem se ver”. É aqui que nada lhe impede a visão do “verdadeiro Sol da altíssima bondade”.

Nada mais se interpõe entre a Alma e Deus. “Longeperto a libera e ninguém a aprisiona com nada”. Os que são fiéis a ele “são sempre tomados por Amor e aniquilados” — “aniquilar”, do latim nihil, significa “tornar em nada” — “por Amor, e completamente desnudados por Amor, e com nada se importam senão com Amor”. É a “cortesia” da “dama Amor” que liberta a Alma da servidão das virtudes, entendidas como tarefa de demonstrar a própria bondade, e a conduz à “escola divina”.

“Virtudes, de vós me libertei para sempre, / Terei agora o coração mais livre e mais feliz”, canta a Alma. “Todo meu coração em vós coloquei, bem o sabeis, / E assim, por um tempo, em grande aflição vivi. / Graves tormentos vivi, muita dor suportei; / Assombroso é que com vida escapei; / E assim sendo, pouco me importa: de vós estou afastada, / Pelo que agradeço a Deus lá no alto; boa foi a jornada”.

Esse Amor é o próprio Espírito Santo. Sobre ele a Razão, a quem a Alma se submetia quando buscava as virtudes, “não sabe falar”. “Amado, prendeste-me em teu amor, / Para tão grande tesouro me dar, / Ou seja, o dom de ti mesmo, / Que é a bondade divina. / O coração não pode isso expressar, / Mas o puro nada querer o refina”, canta a Alma. “Eu disse que o amarei / Eu minto, pois eu não sou. / É só ele que me ama: / Ele é, e eu não sou. / [...] / Ele é pleno / E com isso sou plena / Esse é o âmago divino / E o amor leal”.

Marguerite Porete (c. 1250-1310) foi uma beguina do Condado de Hainaut, na atual fronteira entre a França e a Bélgica. Autora de O espelho das almas simples, sofreu um processo inquisitorial que culminou com a sua morte na fogueira, em Paris.

Felipe Koller é mestre e doutorando em Teologia pela PUCPR e professor visitante da Faculdade de São Basílio Magno e da Católica de Santa Catarina.

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