Lutero em retrato de Lucas Cranach, o Velho, de 1526.
Lutero em retrato de Lucas Cranach, o Velho, de 1526.| Foto: Domínio público

A Reforma empreendida por Martinho Lutero estava enraizada em seu coração, em sua paixão por descobrir o olhar que Deus pousa sobre nós. Na busca desse olhar, à escuta da palavra de Deus, o que ele encontrou foi a experiência cristã como experiência de liberdade, na fé e no amor.

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Lutero é muito consciente que aquilo que costumamos identificar como práticas religiosas — rezar, jejuar, peregrinar, dar esmola, usar um distintivo — são coisas que também “os santarrões fingidos”, como ele chama, podem fazer. Por si mesmas, elas não nos transformam interiormente, não são capazes “de fazer de alguém uma pessoa cristã”. 

É que a nossa própria experiência nos mostra que os mandamentos “ensinam o que é preciso fazer, mas não fornecem a força necessária para realizá-lo”. O seu intuito consiste, na verdade, em nos conduzir ao reconhecimento de nossa incapacidade de fazer o bem, de sermos justos. Esse reconhecimento é que nos faz voltar para a face de Deus, em vez de nos deleitarmos com a nossa aparente justiça.

Assim, o que é fundamental — o que pertence ao fundamento — não são as obras, mas a palavra de Deus, escutada, crida, mastigada, comida, assimilada com todo o coração. Por isso, “a única obra e prática dos cristãos deveria consistir em gravar em seu ser a palavra e Cristo, exercitando e fortalecendo sem cessar essa fé”, escreveu ele.

“Aquele que, com fé verdadeira, se apegar à palavra de Deus, sua alma se unirá à palavra de modo tão íntimo e completo, que todas as virtudes da palavra serão também propriedade da alma”, afirmou Lutero. “Mediante a fé a alma se torna, pela palavra de Deus, santa, justa, verídica, pacífica, livre e repleta de bondade, enfim, uma verdadeira filha de Deus”. Para Lutero, “a esse ponto jamais se chegará mediante leis e obras”.

Com isso, uma vida vivida de acordo com o Espírito de Deus não se torna um monumento à própria justiça, mas um louvor a Deus — e mais: uma obra do próprio Deus. “As promessas de Deus concedem o que os mandamentos ordenam e cumprem o que eles exigem, a fim de que tudo seja de Deus, o mandamento e o cumprimento”, resumiu Lutero. “Somente Deus ordena, e somente Deus cumpre”.

É nesse sentido que a fé nos dispensa dos mandamentos e assim nos faz livres. Não compramos o olhar benfazejo de Deus com as nossas obras. Esse olhar é anterior, vem “por sua palavra cheia de graça, gratuitamente e por pura misericórdia”: é esse olhar o fundamento do bem que pode emergir em mim, e não o contrário. Para o reformador, quem imagina que se torna “agradável a Deus, livre, bem-aventurado ou cristão” por causa de uma boa obra é um “insensato”, “martirizando-se com muitas obras sem jamais atingir a verdadeira justificação”.

Nessa liberdade, tudo me pode servir para a salvação. É a pessoa que se torna “espiritualmente senhora” sobre todas as coisas, “pois nenhuma coisa pode causar-lhe dano para a salvação”. A alma unida à palavra de Deus estabelece uma relação salvífica com todas as coisas: tudo se torna oportunidade de bem e de louvor, nada a separa de Deus ou a aprisiona: ela é livre.

“A fé somente não nos converte em gente ociosa ou em pessoas que cometem o mal, mas, antes, em pessoas que não necessitam de obra alguma para tornar-se agradáveis a Deus e bem-aventuradas”, escreveu o monge. Desde esse novo ponto de partida, a pessoa pode retomar as obras, sabendo, porém, que não é por elas que nos tornamos agradáveis a Deus: elas “são efetuadas gratuitamente por amor livre”.

Aquele que se une à palavra “tudo quanto faz o pratica em total liberdade e gratuitamente, sem jamais buscar o próprio proveito ou salvação — pois já está satisfeito e bem-aventurado através de sua fé e da graça de Deus”. Passa a tratar o outro, gratuita e livremente, como é tratado por Deus, com generosidade e misericórdia, e aqui o mandamento encontra a sua plenitude. Assim, “a pessoa que é cristã não vive em si mesma, mas em Cristo e no seu próximo — em Cristo, pela fé; e no próximo, pelo amor”, escreveu Lutero. “Eis aí a liberdade verdadeira, espiritual e cristã, que liberta o coração de todos os pecados, leis e mandamentos”.

Martinho Lutero (1483-1546) foi um monge agostiniano e teólogo alemão e uma das figuras centrais da Reforma protestante. 

Felipe Koller é mestre e doutorando em Teologia pela PUCPR e professor visitante da Faculdade de São Basílio Magno e da Católica de Santa Catarina.

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