Em Taizé, vivem em comunhão, como sinal de unidade e esperança, cristãos provenientes de diferentes denominações
Em Taizé, vivem em comunhão, como sinal de unidade e esperança, cristãos provenientes de diferentes denominações| Foto: Felipe Koller

Este é o sétimo texto de uma série de 12 artigos que abordam, cada um deles, a contribuição de alguma figura da história das religiões que tenha se destacado por sua experiência, sua sensibilidade e seu pensamento no que toca ao relacionamento do ser humano com o mistério de Deus. O Sempre Família publica um texto novo dessa série a cada segunda-feira. Já falamos de Bernardo de Claraval, Etty Hillesum, Gregório de Nissa, Juliana de Norwich, Rabindranath Tagore e Sinclética de Alexandria.

A leitura de Isaac de Nínive, teólogo cristão do século VI, deve ter impressionado Roger Schutz. “Deus só pode nos dar seu amor”: a frase de Isaac pode muito bem ser tida como o fio condutor da experiência espiritual de Roger e da forma como ele a partilhou com a comunidade que fundou e com as milhares de pessoas que encontrou ao longo de sua vida. A comunidade em questão é Taizé, na França, um oásis surgido nos anos 1940, em plena II Guerra Mundial.

Taizé, que empresta o nome do vilarejo em que se localiza, é uma fraternidade ecumênica que procura transpor para a carne da vida concreta precisamente aquela convicção expressa por Isaac. Ali, vivem em comunhão, seguindo uma regra de inspiração monástica escrita por Roger, cristãos provenientes de diferentes denominações, que se constituem assim como um sinal de unidade e de esperança. “Penso que, desde a minha juventude, nunca perdi a intuição de que uma vida em comunidade pode ser um sinal de que Deus é amor, só amor”, dizia Roger.

A ênfase nessa convicção é um modo de pôr um ponto final em uma religiosidade marcada pelo medo, pela opressão e pela superstição. “Mais do que nunca, é necessário hoje em dia lembrá-lo: o sofrimento nunca vem de Deus. Deus não é o autor do mal, nem quer o sofrimento humano, nem as desordens da natureza, nem a violência dos acidentes, nem as guerras. Partilha a dor de quem atravessa a provação e permite-nos consolar os que sofrem”, escreveu Roger.

Essa sua certeza foi gestada em meio à guerra, quando Roger e sua irmã Geneviève alugaram uma casinha no vilarejo de Taizé para acolher refugiados. Repetindo a sua convicção de que Deus só pode amar, Roger não pretendia se fazer de advogado de Deus, e muito menos da religião, mas sim alimentar a esperança do ser humano, garantindo-lhe a experiência de ser plenamente acolhido. “Deus é amor: se viver de Deus significasse o receio de um castigo, onde estaria o Evangelho?”, escreveu ele.

Em uma oração, Roger delineou bem essa relação entre a fé num Deus que é amor e a experiência humana: “Jesus, nossa alegria, quando compreendemos que tu nos amas, algo da nossa vida é pacificado e mesmo transformado. Nós te perguntamos: que esperas de mim? Pelo Espírito Santo, respondes: que nada o perturbe, eu oro em você, ouse doar a sua vida”.

Deus vive em nós como uma presença que sempre acolhe, que nunca nos volta as costas, que instaura a paz no meio do caos e que abre os nossos olhos para que enxerguemos o outro. Uma presença marcada pela confiança – outra palavra-chave para Roger. “Cristo Jesus, estavas em mim e eu não sabia. Sempre presente e eu não te buscava. Ao descobrir-te, ardia para que fosses tudo em minha vida. Um fogo me abrasava. Com muita frequência te esqueci de novo. Tu não deixavas de amar-me”, escreveu o fundador de Taizé.

Em outra oração, registrou: “Jesus Ressuscitado, às vezes me vês desorientado, como estrangeiro na terra. Mas uma sede preenche a minha alma, uma sede que é desejo da tua presença... E meu coração não descansa até que confie a ti, Cristo, a carga que o mantém longe de ti.”

Essa confiança desloca o nosso olhar para Deus e o próximo, tirando-o de nós mesmos e de nossa obsessão por resultados – que temos a proeza de levar até para a vida espiritual. “Pelo teu Evangelho, Cristo de compaixão, descobrimos que medir aquilo que somos ou não somos não leva a lugar nenhum. O essencial está na muito humilde confiança da fé. Por ela nos é dado compreender que Deus apenas pode dar o seu amor”, escreveu Roger.

“Quem caminha de começo em começo numa vida de comunhão com Jesus, o Cristo, não precisa fixar o olhar sobre os próprios progressos ou recuos. De dia e de noite, a semente do Evangelho, depositada no mais profundo do ser, germina e cresce”, afirmou ainda, ressaltando que nem mesmo a obra da nossa transformação deveria ser para nós motivo de perturbação, pois não é obra nossa, mas de Deus – é uma transfiguração.

“Mudança evangélica nas nossas vidas: pelo Espírito Santo, Cristo atravessa em nós até as forças contraditórias sobre as quais a vontade pouco poder tem. Ele depõe em nós um reflexo do seu rosto, transfigurando aquilo que em nós próprios nos inquieta”, afirmou Roger. “O não que existe em mim, transfigura-o dia a dia num sim. O que me pedes não é uma migalha, mas toda a existência”.

Roger quis que Taizé fosse “uma comunidade onde a bondade do coração e a simplicidade estivessem no centro de tudo”. Esse era o cristianismo pregado e vivido por Roger, muito simples e precisamente assim belo e fecundo: confiar na proximidade de Deus, entrar no quarto do coração para encontrá-lo na própria interioridade, deixar emergir a bondade e viver como irmãos.

Com a Comunidade de Taizé, ele mostrou que a unidade dos cristãos é possível. Viveu essa reconciliação em sua própria vida, descrevendo o seu percurso da seguinte maneira: “Encontrei a minha identidade de cristão reconciliando em mim mesmo a fé das minhas origens” – reformada – “com o mistério da fé católica, sem ruptura de comunhão com quem quer que seja”. Seu caminho de unidade, seu sorriso confiante e seu olhar acolhedor foram a tradução daquilo que ele mesmo dizia: “Para transmitir Cristo, haverá luz mais transparente do que uma vida toda feita de perdão e de bondade infinita, onde a reconciliação é tangível dia após dia?”

Roger Schutz (1915-2005) foi um monge suíço de tradição calvinista. Foi o fundador da Comunidade de Taizé e seu prior até a sua morte. É um dos maiores nomes da história do ecumenismo.

Felipe Koller é repórter do Sempre Família e professor de Teologia. É mestre e doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

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