Em sua mística marcada pelo humano, Teresa d’Ávila entendia que o autoconhecimento e o conhecimento de Deus não se opõem| Foto: Felipe Koller
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Este é o décimo-primeiro texto de uma série de 12 artigos que abordam, cada um deles, a contribuição de alguma figura da história das religiões que tenha se destacado por sua experiência, sua sensibilidade e seu pensamento no que toca ao relacionamento do ser humano com o mistério de Deus. O Sempre Família publica um texto novo dessa série a cada segunda-feira. Já falamos de Bernardo de Claraval, Etty Hillesum, Gregório de Nissa, Juliana de Norwich, Rabindranath Tagore, Sinclética de Alexandria, Roger de Taizé, Jalal ad-Din Rumi, Hildegarda de Bingen e Plotino.

Na Espanha do século XVI, estava em alta uma visão de espiritualidade bastante desencarnada. Os “espirituais”, como eram chamados, recusavam que a sensibilidade e o imaginário pudessem ter um papel na experiência espiritual. No meio desse cenário, movia-se uma monja de clausura com uma vocação à liderança tão forte que era rotulada como “inquieta” e “andarilha” por líderes religiosos da época. Ela não aceitava uma espiritualidade abstrata como aquela e estava convicta de que o caminho era outro: se Deus mesmo havia se encarnado, o encontro com ele não se dá a não ser na humanidade de Cristo.

Seu nome era Teresa de Jesus – muitas vezes chamada de Teresa d’Ávila, província em que nasceu – e ela acabou reconhecida como uma das maiores mulheres da história do cristianismo. “Deus deseja que o recebamos por meio dessa Humanidade sacratíssima”, escreveu ela. “Tenho certeza de que temos de entrar por essa porta se quisermos que a soberana Majestade nos revele grandes segredos”.

Teresa despertou da tibieza que marcou a primeira fase de sua vida religiosa não ao se deslocar para outro plano, deixando o bom senso, o bom humor e a sensibilidade, mas justamente percorrendo o caminho da acolhida da própria humanidade – e, nela, da humanidade de Cristo.

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O encontro com Deus na carne ficou registrado naquela que é talvez a obra mais conhecida a retratá-la, a escultura O êxtase de Santa Teresa, de Bernini. “Feriu-me com uma flecha / empeçonhada de amor / e minha alma ficou feita / uma com seu Criador. / Já não quero outro amor / pois a meu Deus tenho-me dado / e meu amado é para mim / e eu sou para meu amado”, escreveu ela mesma, apaixonada, em um poema.

Essa experiência de encontro com um Deus que é amor e que compreende a nossa humanidade é o que ela procurou despertar nas monjas que orientou ao longo de sua vida. Para ela, Deus é um “amigo verdadeiro” e a oração não é senão “falar de amizade, permanecendo muitas vezes a sós com quem sabemos que nos ama”.

Em sua mística marcada pelo humano, Teresa entendia que o autoconhecimento e o conhecimento de Deus não se opõem. Pelo contrário, dependem um do outro. Ela sintetizou essa dinâmica brilhantemente em um dos seus poemas, em que pôs na boca de Deus o convite: “Alma, buscar-te-ás em Mim. E a Mim buscar-me-ás em ti”. “Sim, porque és meu aposento, és minha casa e morada”, reafirma o poema.

“A questão de nos conhecer é tão importante que eu gostaria que houvesse nisso nenhuma negligência”, orientou ela. “Jamais chegamos a nos conhecer totalmente se não procurarmos conhecer a Deus. Olhando a sua grandeza, percebemos a nossa baixeza; observando a sua pureza, vemos a nossa sujeira; considerando a sua humildade, constatamos como estamos longe de ser humildes”.

Assim, também para Teresa, como para outros místicos, o autoconhecimento é a chave da humildade, que é a porta para a caridade, que é o espaço da comunhão com Deus. “É como a água que está num vaso: não sendo iluminada, parece límpida; se o sol a atinge, logo vê que está cheia de poeira”, ensinou ela. Essa constatação, no entanto, não deve nos perturbar – e esse é o critério para discernir entre a humildade verdadeira e a sua falsificação.

Teresa dizia que há “humildades que vêm do demônio”: são aquelas que vêm “acompanhadas de grande inquietação a respeito da gravidade dos nossos pecados”. A humildade verdadeira, pelo contrário, “não inquieta, não desassossega nem deixa a alma em alvoroço, por maior que seja; ao contrário, vem com paz, com contentamento e tranquilidade”. Afinal, Teresa acreditava num Deus de cujo amor não é possível se separar. Daí a confiança, expressa em outro poema: “Nada te turbe / nada te espante / pois tudo passa /só Deus não muda / […] / Quem a Deus tenha / nada lhe falta / pois só Deus basta”.

Essa humildade verdadeira “amplia o coração”, escreveu ela. A humildade como ponto de partida, portanto, nos permite não apenas acolher a nós mesmos e ao Filho de Deus que assumiu a nossa humanidade, mas nos educa a acolher a humanidade do outro.

Teresa, por isso, não tinha dúvida: “Quanto mais adiantadas estiverem no amor ao próximo, tanto mais o estareis no amor a Deus”, dizia às suas monjas. “Se essa virtude” – a caridade – “vos faltar, ainda que tenhais devoção e satisfação espirituais e alguma suspensãozinha na oração de quietude – de modo que logo vos pareça haver atingido o cume e estar tudo feito – crede-me: não chegastes à união”.

O castelo interior de Teresa pode parecer complexo à primeira vista, mas a sua proposta é simples: “Só duas coisas nos pede o Senhor: amor a sua majestade e amor ao próximo”, escreveu ela. E isso cada um é chamado a experimentar no seu próprio caminho, como aludiu ela, com seu costumeiro bom humor: “Quem tiver alguma experiência vai me entender, pois, se não entender, não sei dizer com outras palavras”.

Teresa de Jesus (1515-1582) foi uma monja católica espanhola. Notabilizou-se como reformadora da ordem carmelita. Foi canonizada em 1622 e proclamada doutora da Igreja em 1970. Entre seus principais escritos, estão o Livro da vida, Caminho de perfeição, Castelo interior e três dezenas de poemas.

Felipe Koller é mestre e doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e professor visitante da Faculdade São Basílio Magno e da Católica de Santa Catarina.

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