“Jesus lavando os pés de Pedro” (1852), de Ford Madox Brown.
“Jesus lavando os pés de Pedro” (1852), de Ford Madox Brown.| Foto: Domínio público

“Que valeria o amor, sem a alegria?”, questionou o filósofo francês André Comte-Sponville. Mas poderíamos também perguntar: e é possível alguém ser verdadeiramente alegre sem amar ou ser amado? Definitivamente não. O amor se revela no encontro. Seja no encontro e na relação com as pessoas ao nosso redor ou mesmo na nossa relação com Deus, é no saber que amamos e que somos amados que a alegria brota em nós. Em sua Suma Teológica, São Tomás de Aquino afirma que “o homem experimenta a alegria quando se encontra em harmonia com a natureza, e, sobretudo, no encontro, na partilha, na comunhão com o outro”.

Essa harmonia na relação com o outro – ou com o Outro – e, por consequência, a experiência da alegria verdadeira, acontece a partir do amor vivido em suas diversas faces. Para o padre Gabriel Augusto Vecchi, monge do Mosteiro Trapista Nossa Senhora da Boa Vista, a alegria, por exemplo, “é servir como um Senhor”. E como serve um senhor? Pensemos na relação alegórica entre servo, aquele que serve, e senhor, aquele que é servido. Um senhor, simplesmente, não precisa servir, afinal não é sua função, pelo contrário: seu papel é ser servido. Portanto, se um senhor decide servir a quem quer que seja, ele só o faz espontaneamente, livremente. Ele só escolhe servir porque ama a quem serve e isso o faz feliz, o torna alegre. Para o cristão, essa maneira de servir é o mais sublime exemplo de Cristo, como descrito na passagem do lava-pés.

A alegria experimentada a partir do serviço também foi expressada pelo poeta indiano Rabindranath Tagore em um de seus poemas: “Eu dormia / e sonhava / que a vida era alegria. / Acordei / e vi que a vida era serviço. / Servi / e vi que o serviço era a alegria”. Santa Teresa de Calcutá era muito didática ao explicar o que devemos priorizar para sermos alegres. Segundo ela, vivemos a alegria quando colocamos as coisas na ordem certa: JOY (em português, alegria) – primeiro “Jesus”, depois “Others” (os outros) e só depois “You” (você).

Conformidade com o bem

Em sua obra Caminho, São Josemaria Escrivá afirma que “a verdadeira virtude não é triste nem antipática, mas amavelmente alegre”. Isso se confirma no pensamento de Comte-Sponville. Para ele, “o excesso de seriedade, mesmo na virtude, tem algo de suspeito e de inquietante: deve haver alguma ilusão ou algum fanatismo nisso. É virtude que se acredita e que, por isso, carece de virtude”.

A alegria, para a maioria das pessoas, é conhecida como uma emoção agradável que gera um bem-estar extasiante e é comumente afirmada como sinônimo de vida e de festa na alma. Para a psicóloga e terapeuta familiar Clarice Ebert, ela também é um sinal de saúde mental, emocional e espiritual e que, por isso, deve ser buscada. No entanto, “é um equívoco se pensar que a alegria seria uma realidade ao se ter tudo o que se deseja, porque além de ser uma emoção, pode-se dizer que é também uma virtude. Ou seja, a alegria envolve uma conformidade com o bem e uma conduta de dignidade”, explica a psicóloga. “Por essa perspectiva, a alegria não seria apenas uma emoção que emerge ao acaso quando acontece algo de bom, mas é uma virtude que se pode estabelecer nas expressões e condutas”.

Vista desse modo, a alegria pode, inclusive, ser um termômetro para a tomada de decisões, já que envolve uma conformidade com o bem. Se alguma situação gera em nós profunda tristeza ou excesso de seriedade, por exemplo, é sinal de que algo está errado. Ali não há amor, não há serviço, não há virtude. Essa dinâmica também é refletida por Joseph Ratzinger ao tratar do discernimento espiritual: “Uma das regras fundamentais para o discernimento espiritual poderia ser formulada assim: onde falta a alegria, onde morre o humor, ali não está nem sequer o Espírito Santo, o Espírito de Jesus Cristo. E pelo contrário: a alegria é um sinal da graça”.

Equívocos

Mas esse “termômetro” só pode ser levado em conta quando temos a real noção do que é a verdadeira alegria. Para muitos, ela está associada ao prazer, ao possuir aquilo que se deseja. Como isso poderia ser verdade se tantos têm tanto e, ainda assim, são tristes? Não é incomum ouvir conselhos do tipo: “Se isso vai te deixar alegre, compre!”, “É isso que vai te fazer feliz, faça!”. Mas provavelmente isso não vai funcionar por muito tempo. Em sua carta apostólica Gaudete in Domino (em tradução livre, “Alegrai-vos no Senhor”), o Papa Paulo VI afirma que “a sociedade tecnológica teve a possibilidade de multiplicar as ocasiões de prazer; no entanto ela também encontra grandes dificuldades em experimentar a alegria. Pois esta provém de outra fonte. A alegria é espiritual”.

Para Clarice, “é um equívoco achar que experimentar a alegria seria possível somente quando as coisas estão bem e as circunstâncias favoráveis, quando se está com quem se gosta, ou se tem o que se quer, na quantidade certa, com muita liberdade e prazer ilimitados”, alerta. “Infelizmente, muitas pessoas, apesar de terem doses fartas dessas características em suas vidas, ainda assim são extremamente tristes”. De acordo com a psicóloga, a alegria verdadeira é um estado de satisfação e contentamento por tudo aquilo que foi aprendido nas experiências da vida. “Não aquela que se nutre por episódios de ganhos, famas e sucessos, mas uma alegria que brota a partir de algo que nutre a interioridade com consistência”.

Frestas

Nesse sentido, encontramos uma das principais chaves que pode nos ajudar a tornar a alegria uma realidade a ser vivida: a gratidão. Não pode ser alegre aquele que não busca ser grato pelas experiências que vive e pelas coisas que tem. Quem costuma viver de murmurações, focando nas faltas, nos erros, na negatividade das circunstâncias, acaba colhendo a tristeza. Já a alegria nos convida a olhar além de tudo isso.

Mas cuidado, “não é um mero ‘jogo do contente’, que muitas vezes nutre a irresponsabilidade diante do que precisa ser enfrentado e mudado”, alerta Clarice. “Mas é um treino em se desfocar das faltas para visualizar as abundâncias. Essas que são fartamente presentes e se mostram em inúmeros micros sinais em nossa vida”. E aqueles que percebem esses sinais experimentam a mais pura alegria, como expressa o escritor belo-horizontino Bernardo Lins Brandão no poema: “alegria, pura / dos bêbados / dos náufragos / dos santos / abandonar-se / ao manancial / das circunstâncias”.

Esse abandono é a ação fundamental do contemplativo que, como aponta padre Gabriel, tem a alegria como sua principal característica, afinal “o que esperar de alguém que optou com toda a sua vida pela Verdade e o Amor?”, se pergunta o monge. A alegria é espiritual, um estado de espírito. É um dom, vem gratuitamente. Não se conquista, não se domina, não se compra nem dela se apropria. É resultado de um “paciente esforço de educação para aprender ou então reaprender a saborear simplesmente as múltiplas alegrias humanas”, como diz Paulo VI. Podemos abrir para ela uma fresta, sermos gratos, por exemplo. Ou então, como reflete padre Gabriel, ter a coragem de dar a vida a quem se ama, mesmo quando tudo vai contra. Assim abrimos outra fresta. E, de repente, podemos cantar com padre Zezinho: “Felicidade chegou, nem sequer se apresentou, foi entrando de mansinho, pela fresta que eu deixei, e porque me descuidei, Deus entrou com seu amor”.

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