Para Rumi, o amor ardente a Deus é a via da verdadeira religião, que se trata de um relacionamento que põe no centro o Amado
Para Rumi, o amor ardente a Deus é a via da verdadeira religião, que se trata de um relacionamento que põe no centro o Amado| Foto: Felipe Koller

Este é o oitavo texto de uma série de 12 artigos que abordam, cada um deles, a contribuição de alguma figura da história das religiões que tenha se destacado por sua experiência, sua sensibilidade e seu pensamento no que toca ao relacionamento do ser humano com o mistério de Deus. O Sempre Família publica um texto novo dessa série a cada segunda-feira. Já falamos de Bernardo de Claraval, Etty Hillesum, Gregório de Nissa, Juliana de Norwich, Rabindranath Tagore, Sinclética de Alexandria e Roger de Taizé.

Certa vez, Moisés ouviu a voz de um pastor de ovelhas que rezava assim: “Ó Deus, mostra-me onde estás, para que eu possa tornar-me teu servo, para que eu amarre tuas sandálias e penteie teus cabelos, para que eu lave tua roupa, mate teus piolhos, traga teu leite, ó meu adorado! Que eu beije tua mão amada, que massageie teu pé amado e, na hora de dormir, balance tua pequena cama”. Moisés repreendeu o pastor, considerando perversa essa forma familiar demais de falar com Deus.

Com isso, o pastor se envergonhou e se retirou para o deserto. Então Deus disse a Moisés: “Separaste meu servidor de mim. Eis que viestes para reconciliar meu povo comigo, e não para afastá-lo de mim. Aqueles que amam os belos ritos são de uma classe, aqueles cujos corações e almas ardem de amor são de outra. Os mergulhadores não precisam de sapatos”. O coração de Moisés se iluminou e ele correu ao deserto à procura do pastor. Ao encontrá-lo, lhe disse: “Tua blasfêmia é a verdadeira religião”.

A parábola, narrada por Rumi, sintetiza bem o pensamento desse místico muçulmano do século XIII. Para ele, o amor ardente a Deus é o único caminho da verdadeira religião, que se trata de um relacionamento que coloca no centro o Amado – enquanto a religião focada na observância a determinadas regras mantém o eu no centro de tudo. “Além das ideias de certo e errado, / há um jardim. Eu o encontrarei lá. / Quando a alma se deita naquela grama, / o mundo está preenchido demais para que falemos dele”, escreveu o poeta.

Isso não significa a negação da verdade, mas, pelo contrário, a afirmação de que a verdade não é banal e que não bastam alguns conceitos ou teorias para transmiti-la: ela abre as suas portas quando é acessada com a inteireza do ser. “A verdade pode ser falsa / quando não habitada pelo Amado. / Por mais que repitas expressões piedosas, / se és um tolo, elas em nada te afetam; / não, nem que as coloques por escrito, / ou as proclames com alarde;/ a sabedoria afasta sua face de ti, ó homem pecador, / a sabedoria aparta-te de ti e foge!”, diz um poema de Rumi.

Ou ainda: “Amantes encontram lugares secretos / neste mundo violento / onde fazem acordos / com a beleza. / A razão nega: absurdo; / vasculhei e medi as muralhas: / não existem tais lugares. / O amor diz: existem / (...) / Amantes percebem a verdade interior / pessoas racionais a negam”. É que, diz Rumi, “o olho do Mar é uma coisa, a espuma é uma outra”, daí o conselho: “Deixa a espuma e olha com o olho do Mar”.

Afinal, se a verdade é identificada em Deus com o amor, como encarcerar o amor em conceitos? “Por mais que se descreva ou se explique o amor, / quando nos apaixonamos envergonhamo-nos de nossas palavras. / A explicação pela língua esclarece a maioria das coisas, / mas o amor não explicado é mais claro. / Quando a pena se apressou em escrever, / ao chegar no tema do amor, partiu-se em duas. / Quando o discurso tocou na questão do amor, / a pena partiu-se e o papel rasgou-se. / Ao explicá-lo, a razão logo empaca, como um asno no atoleiro; / nada senão o próprio Amor pode explicar o amor e os amantes”, escreveu Rumi.

A ênfase no amor em Rumi significa uma ênfase na unidade. Existe uma sede de unidade no ser humano e o amor é o espaço em que ele encontra resposta a essa sede, religando-o ao mundo da divindade, que é o mundo da unidade. Ser no Amado, para Rumi, é entrar na melhor das visões, a visão do uno. “O meu lugar é sempre o não lugar, / não sou do corpo, da alma, sou do Amado. / O mundo é apenas Um, venci o Dois. / Sigo a cantar e a buscar sempre o Um”, escreveu ele.

O amor é a manifestação dessa saudade da unidade, que é uma saudade de Deus. “O dia todo eu penso nisso, mas é só de noite que eu digo. / De onde eu vim, e o que eu deveria estar fazendo? / Eu não faço ideia. / A minha alma é de algum outro lugar, eu tenho certeza disso, / e a minha intenção é de lá m’acabar. / Esta embriaguez começou em alguma outra taverna. / Quando eu voltar, um dia, àquele lugar, / eu estarei completamente sóbrio. / Enquanto isso, / eu sou como um pássaro de algum outro continente, sentado neste aviário. / Há de chegar o dia em que eu voe, / mas quem é este em meu ouvido, agora, que ouve a minha voz? / Quem é este que diz palavras com a minha boca?”, reflete um poema de Rumi.

Amor e unidade exigem a morte do próprio eu. A autoafirmação é uma muralha entre o Amado e o amante. Rumi usa o exemplo da gota d’água: enquanto permanece sozinha, ciosa da própria forma, estará sempre ameaçada pela impetuosidade do vento e pela força da terra. Só se protegerá do risco de se fragmentar quando unir-se à sua fonte, o mar, onde sua forma exterior desaparece, mas a sua essência resta inalterada.

Essa intimidade com Deus não está em outra parte qualquer, num estado interior inacessível, mas está ao alcance de um suspiro. Afinal, Deus está mais perto do ser humano do que a sua própria veia jugular, como reza o Corão (50,16). O Amado está sempre à disposição. Seu amor está sempre de portas abertas. “Pelo esplendor do meio-dia, e pela noite quando serena, teu Senhor não te abandonou nem te odeia”, diz o Corão (93,1-3).

Por isso, para Rumi, a estação mais importante no caminho rumo à unidade é a pobreza, entendida como uma experiência radical de estar completamente nu, de mãos vazias, diante de Deus. Seu único tesouro é o amor de Deus. Escreveu ele: “No dia da Ressurreição, homens e mulheres comparecerão / pálidos e trêmulos de medo para o julgamento final. / Eu apresentarei o teu amor em minhas mãos e te direi: / Interrogue-o, ele te responderá”.

O amante, aliás, jamais busca o Amado sem antes ter sido buscado por ele. O Amado deixa, porém, o espaço da acolhida livre. Deseja o convite e recusa a imposição. É o que Rumi narra em outro poema: “Teu amor chegou a meu coração e partiu feliz. / Depois retornou e se envolveu com o hábito do amor, / mas retirou-se novamente. / Timidamente, eu lhe disse: “Permanece dois ou três dias!” / Então veio, assentou-se junto a mim e esqueceu-se de partir”.

Jalal ad-Din Rumi (1207-1273) foi um poeta persa muçulmano nascido no atual Afeganistão. É um dos principais nomes do sufismo, uma corrente mística do islã. Entre suas principais obras estão o Masnavi e o Fiji Ma Fiji.

Felipe Koller é mestre e doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e professor visitante da Faculdade São Basílio Magno e da Católica de Santa Catarina.

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