"O lago com nenúfares, harmonia verde" (1899), de Monet.
“O lago com nenúfares, harmonia verde” (1899), de Monet.| Foto: Domínio público

“Nada te perturbe, nada te espante” – assim começa o poema mais conhecido de Teresa d’Ávila. Quem não gostaria que fosse assim sempre? A serenidade é uma virtude a ser continuamente cultivada em nossa interioridade. Dificilmente se dá por conquistada. Ao mesmo tempo, não podemos subestimar a sua importância. Sem serenidade, o caos impera, dentro e fora de nós.

“A serenidade é um estado de espírito. É frágil, delicada e efêmera. Não a conquistamos como algo que será nosso para sempre. Assim como não ficamos eternamente felizes depois de conseguir obter determinado emprego ou ficar com a pessoa amada, não ficamos eternamente serenos depois de experimentar a serenidade”, explica a psicóloga Michele Maba. “É um estado tão frágil que pode ir embora como um passarinho pousado sobre o muro ao primeiro sinal de perturbação”.

Reconhecer que a serenidade não é algo a ser conquistado definitivamente é também perceber que ela nada tem a ver com uma sensação de anestesia diante do sofrimento e do mal no mundo. A serenidade não é indiferença e não fecha as portas à justa indignação.

A raiz da paz

Etty Hillesum, mística judia morta no holocausto, tinha consciência disso. “Não acreditarei, em minha inocência, que a paz que descer sobre mim é eterna; aceitarei a inquietude e o combate que se seguirão”, escreveu em seu diário.

Isso não a impedia, porém, de considerar a paz interior como o fundamento de toda paz social. “No fundo, o nosso único dever moral é o de desbravar em nós mesmos vastas áreas de tranquilidade, de uma tranquilidade cada vez maior, até sermos capazes de irradiar também sobre os outros. E quanto mais paz houver nas pessoas, mais paz haverá neste mundo conturbado”, afirmou.

“A questão de uma paz mundial duradoura diz respeito aos seres humanos, pois sentimentos humanos básicos também estão em suas raízes. Através da paz interior, a genuína paz mundial pode ser alcançada”, defendeu, no mesmo sentido, o Dalai Lama. “Uma atmosfera de paz deve ser criada primeiro dentro de nós, e depois gradualmente se expandir para incluir nossas famílias, nossas comunidades e, por fim, todo o planeta”.

Um olhar mais cristalino

É por isso que a serenidade não só não é indiferença, como é condição de uma resposta eficaz contra o mal. “Esta barbárie que é a nossa, deveríamos rejeitá-la interiormente, não temos o direito de cultivar em nós esse ódio, porque não é dessa forma que o mundo supera sequer um polegar da lama em que se vê envolvido”, afirmou Etty. “Cada migalha de ódio que se acrescenta ao ódio já exorbitante torna esse mundo inabitável e insustentável”.

Os padres do deserto – como a tradição cristã chamou os homens e mulheres que buscaram se recolher nas regiões desérticas do Egito, da Síria e da Palestina, nos primeiros séculos do cristianismo – encararam a nudez do encontro com a própria solidão exatamente para isso. Seu desejo era a purificação do coração – para assim ver a Deus, como dizem as bem-aventuranças. Com isso, experimentavam a hesychia, a paz do coração – daí o hesicasmo, a corrente espiritual iniciada a partir de sua experiência. Um deles, Rufo, dizia que essa paz interior é o que está na origem de toda virtude.

Caminhando nos passos dessa tradição, Inácio de Loiola, o fundador dos jesuítas, considerava as experiências de consolação e de desolação como eixos fundamentais da vida interior. Para ele, “é próprio de Deus” “dar verdadeira alegria e gozo espiritual, tirando toda a tristeza e perturbação”, enquanto é próprio do “inimigo” “lutar contra a alegria e consolação espiritual”. “Se o decurso dos pensamentos” “inquieta ou perturba” a alma, “é claro sinal que procede do mau espírito”, ensinava Inácio.

Condição de discernimento

O que Inácio pretendia não era ignorar as causas psicológicas, médicas ou sociais da desolação, mas denunciar discursos religiosos que se apoiam na perturbação interior em lugar de promover a paz, a quietude e a consolação – e considerar a presença dessa paz como condição para o discernimento dos nossos caminhos. Viver a serenidade significa se recolher num espaço de reconciliação interior que nos previne das pressões que nos oprimem, confundem e distraem.

“A serenidade tem muito a ver com um estado de presença do ser humano, porque quando seus pensamentos fazem você viajar para o passado ou o futuro, você visita coisas que não estão ao seu alcance. Essa eterna tentativa de controlar o que não se pode controlar – porque o que está no passado já foi e o que está no futuro depende de coisas que você não sabe como serão – faz com que a serenidade seja roubada”, explica Michele. “A serenidade só pode ser curtida se estamos plenamente no presente, num estado de aqui-agora, e se conseguimos abandonar a tentativa de controlar as coisas ao nosso redor. O controle rouba a serenidade”.

“Nós não damos conta de fazer com que a nossa vida seja exatamente como gostaríamos que fosse. O planejamento é importante, sonhar é importante, sair do lugar e se movimentar para direcionar a vida é importante, mas a vida vive provando para a gente que nós não estamos no controle”, avalia a psicóloga. Habitar no próprio presente – e, assim, expulsar os fantasmas que tornam o nosso olhar sobre a realidade menos límpido – é o dom que recebemos quando nos dedicamos a cultivar um espaço de serenidade dentro de nós.

Deixe sua opinião