"Uma manhã de chuva" (c. 1896), de Henri Rousseau.
“Uma manhã de chuva” (c. 1896), de Henri Rousseau.| Foto: Domínio público

Num estudo do psicólogo Yves de La Taille, foram apresentadas a crianças de 6 e 9 anos duas histórias. A primeira falava de uma criança doente que havia pedido ao amigo que fosse visitá-la para que pudessem brincar juntos e, assim, superar a tristeza da doença. O amigo, porém, não estava com vontade e não foi. A segunda história falava de uma menina que resolveu levar para casa a casinha de massinha de modelar que fez na escola com outras duas amigas, mesmo que o combinado tivesse sido deixá-la na escola. A primeira é um exemplo de carência de generosidade; a segunda, de carência de justiça.

O que o psicólogo percebeu foi que a maioria das crianças condenou as duas ações. No entanto, enquanto a maior parte delas avaliou que a criança do segundo exemplo pode ter tido sentimentos positivos ao levar a casinha para casa, pouquíssimas acharam que o amigo da primeira história experimentou sentimentos positivos ao negar o convite do amigo. A falta de generosidade, assim, estaria associada à infelicidade, no universo moral das crianças.

Inversamente, Jesus de Nazaré disse que “há mais felicidade em dar do que em receber”. A virtude da generosidade – que também pode ser chamada de magnanimidade ou liberalidade – tem um quê de transbordamento. Calvino afirmou: “Há pessoas que são conhecidas por serem muito generosas, mas elas nunca doam sem repreensões, orgulho ou insolência”. Essa generosidade não é digna do nome de virtude. Em vez de nos transformar interiormente, nos maquia. E mais: além de não nos transformar, essa disposição não transforma o mundo à nossa volta. É apenas, como diz o filósofo André Comte-Sponville “o preço de nosso conforto moral, o precinho de nossa conscienciazinha tranquila”.

Nem filantropia...

“Num modelo econômico e social cujo objetivo é o crescimento da riqueza material, sem que isso signifique atender às necessidades de sobrevivência da maioria ou a distribuição dos frutos desta riqueza para todos, faz pouco sentido falar em generosidade. Neste contexto, a generosidade seria mera filantropia, o que seria feito para mitigar efeitos da injustiça social sem, contudo, mudar a forma de funcionamento do sistema econômico”, explica Angela Welters, professora de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

“Um sistema econômico mais generoso deveria ser capaz de produzir riqueza capaz de atender as necessidades básicas de consumo de todos. Neste sistema, a produção deveria ser voltada inicialmente ao atendimento das necessidades básicas da sociedade e não apenas pelo lucro”, aponta a economista, que afirma que vários caminhos têm sido propostos como alternativa, uns mais e outros menos reformistas, mas sempre ressaltando a necessidade de direcionar o modelo econômico para o bem comum. Nesse sentido, a generosidade se alinha à justiça e ao mesmo tempo a extrapola e a inspira.

Comte-Sponville escreveu: “A generosidade é mais subjetiva, mais singular, mais afetiva, mais espontânea, ao passo que a justiça, mesmo quando aplicada, guarda em si algo mais objetivo, mais universal, mais intelectual ou mais refletido. A generosidade parece dever mais ao coração ou ao temperamento; a justiça, ao espírito ou à razão. Os direitos humanos, por exemplo, podem constituir objeto de uma declaração. A generosidade não: trata-se de agir, e não em função de determinado texto, de determinada lei, mas além de qualquer texto, além de qualquer lei, em todo caso humana, e unicamente de acordo com as exigências do amor, da moral ou da solidariedade”.

...nem paparicação

Boa parte do que se falou sobre generosidade ao longo da história se fixou na distinção entre essa virtude e a justiça. “Ser generoso é, por assim dizer, ser bom quando não se tem a obrigação de sê-lo. Ser justo é não fazer o mal, cumprir seus deveres e lutar para que os direitos de todos, inclusive os nossos, sejam respeitados. Já ser generoso é ir além, é doar um pouco de si – nem que seja o tempo e a atenção – a alguém sem esperar algo em troca e sem que possamos sofrer algum tipo de retaliação por não o fazer”, explica o psicólogo Gabriel Resgala.

Resgala concorda que a generosidade “é uma virtude importante para o desenvolvimento da sociedade”. Ele alerta, porém, para que esse conceito esteja amadurecido, de modo a evitar certas formas de sofrimento psicológico. “Diferenciar generosidade de justiça é importante para que não exijamos ser tratados de forma generosa como se fosse um direito nosso. Podemos desejar que alguém seja generoso conosco, mas devemos ser cautelosos quanto a esperar que isso seja uma conduta natural da pessoa, uma obrigação – sobretudo quando não temos intimidade suficiente com ela para tal”.

“No âmbito familiar, num namoro ou entre amigos próximos, essa diferenciação obviamente se torna mais complexa – pois essas relações não são permeadas somente pela justiça e pela polidez, mas também por afetos que tornam tudo bem mais íntimo. Desenvolver habilidades sociais como a assertividade torna-se, então, um desafio importante para manter um ambiente saudável para todos”, orienta o psicólogo. Assim como não tem a ver com o alívio de uma consciência já meio amortecida, a generosidade não é paparicação nem uma postura passiva incapaz de dizer não.

Livre fraternidade

Nesse sentido, é interessante que Descartes sublinhe que a particularidade da generosidade se encontraria justamente na liberdade. “O que há de mais mesquinho que o eu? O que há de mais sórdido do que o egoísmo? Ser generoso é ser livre de si, de suas pequenas covardias, de suas pequenas posses, de suas pequenas cóleras, de seus pequenos ciúmes”, comenta Comte-Sponville. “Descartes via nisso não apenas o princípio de toda virtude, mas o bem soberano”.

De La Taille aponta precisamente para isso em seu estudo: “Nem tudo é relação com autoridade, hedonismo instrumental e medo do castigo, no início da vida moral infantil”. A resposta das crianças sobre os sentimentos experimentados pelos protagonistas das duas histórias aponta que a generosidade é uma virtude “melhor assimilada e, portanto, integrada à consciência moral, do que a justiça” na primeira infância. “A diferença [entre as duas histórias] deve estar no fato de a generosidade, por ser menos relacionada às imposições das figuras de autoridade do que as regras de justiça, e mais a relações sociais simétricas despertadas pela simpatia, ser produto de uma construção mais autêntica porque decorrente de relações de cooperação”.

Originalmente, a palavra latina generositas indicava uma boa linhagem – tem a mesma raiz de gênesis, genealogia, ge(ne)ração ou genital. Alargando esse conceito original, podemos dizer que uma boa linhagem é aquela que, com empatia, não se vê como digna dos privilégios que carrega, mas se torna capaz de olhar a todos como congêneres – irmãos. A um irmão se faz o bem com liberdade e com prazer, sem mesquinharia nem por submissão. Somente esse olhar transforma o nosso próprio interior e a realidade concreta em que vivemos.

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