Olhar o todo do paciente é também saber quais são os valores espirituais dele - o que não tem relação apenas com a religião
Olhar o todo do paciente é também saber quais são os valores espirituais dele – o que não tem relação apenas com a religião| Foto: Fa Barboza/Unsplash

Além de aferir os níveis do colesterol, observar a pressão arterial e explicar a importância dos exercícios físicos e da dieta com menos sal no dia a dia, não se surpreenda caso o médico cardiologista queira saber mais sobre a sua espiritualidade.

No ano passado, a atualização das diretrizes de prevenção cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia incluiu entre as recomendações que os médicos da área se dediquem a conhecer melhor esta percepção dos pacientes. Isso significa saber qual é a religião ou a fé daquela pessoa, mas não apenas isso.

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Segundo a entidade, a espiritualidade se traduz em "um aspecto dinâmico e intrínseco da humanidade, pelo qual as pessoas buscam significado, propósito, transcendência e experimentam relacionamento com o eu, a família, os outros, a comunidade, a sociedade, a natureza e o significativo ou sagrado. Espiritualidade é expressa por crenças, valores, tradições e práticas".

A preocupação se mostrou válida depois que alguns estudos, inclusive brasileiro, demonstraram uma relação entre o espiritual do paciente e os processos de adoecimento e mesmo de cura. Porém, ter valores que guiam o caminho pode ou ajudar, ou às vezes prejudicar, o enfrentamento das doenças, de acordo com Roberto Esporcatte, presidente do departamento de Espiritualidade e Medicina Cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

"Essa conexão com um valor transcendental pode trazer os valores de uma força superior que pode ajudar. Por outro lado, a pessoa pode entrar em uma luta espiritual, que a leva a questionar esses valores e a reagir mal: a pessoa não aceita que está doente, sente-se abandonada, injustiçada e isso dificulta a reação contra a doença", explica Esporcatte, que também é professor associado de Cardiologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Saúde cardiovascular

Pensando nas doenças cardíacas, que são a principal causa de morte no Brasil, e no mundo segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), conhecer a espiritualidade do paciente pode ajudar os médicos a manejarem os fatores de risco clássicos (obesidade, tabagismo, sedentarismo, etc), mas também os não tão conhecidos, como o equilíbrio emocional.

"Quando a pessoa tem um equilíbrio espiritual e emocional maior, ela é capaz de lidar com todos os desafios do mundo exterior de forma a se manter preservada. Ainda que fique doente, ela volta ao status de equilíbrio que perde ao adoecer", explica Glaucia Maria Moraes de Oliveira, médica cardiologista e responsável pelo Comitê de Doenças Cardiovasculares em Mulheres do American College of Cardiology e da SBC, além de professora de Cardiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Obter essas informações durante uma consulta nem sempre é fácil, segundo a médica, mas há questionários que podem ser usados, e são listados nas diretrizes da SBC. "O médico tem que ter essas ferramentas em mãos para tentar entender as condutas e comportamentos do paciente que o levaram a ter a doença. Muitas vezes o que vemos é uma melhora na adesão ao tratamento", explica. "Não adianta só dar o remédio, mas trabalhar essas questões com uma intervenção de espiritualidade para que possa trazê-lo de volta ao equilíbrio", completa.

De acordo com Esporcatte, em uma entrevista no consultório, o médico pode questionar o paciente sobre ter uma fé ou crença, se ele se considera espiritualizado ou se isso é importante para ele e para o tratamento que vai fazer, entre outras questões. O impacto não é apenas em questões práticas, como a permissão para a doação de sangue, mas na identificação de angústias que demandarão mais atenção da equipe de saúde.

"Essa anamnese [entrevista] vai identificar o quanto o paciente precisa de atendimento especial e quem o fará. No capítulo sobre espiritualidade das diretrizes da SBC, colocamos que esse suporte deve ser dado pelo profissional capacitado em sofrimento espiritual, que pode ser o capelão da instituição. Às vezes é um suporte psicológico e psiquiátrico. Mas os profissionais da saúde também têm que se capacitar, e isso é algo que não se aprende na escola", destaca Esporcatte.

Aceitação dos pacientes

Pode até parecer um assunto que os pacientes desejem guardar para si, mas há estudos que demonstram sensação maior de acolhimento quando médicos se interessam em saber mais sobre a espiritualidade daqueles que estão cuidando. José Eduardo de Siqueira, professor titular do curso de Medicina da PUC - Londrina, e do Mestrado em Bioética da PUCPR, cita uma pesquisa de mestrado, do qual foi orientador, que olhou justamente para essa questão.

"A pesquisadora conversou com pacientes, médicos e familiares para entender como cada um encarava a espiritualidade dos pacientes. Os médicos não sabiam como tratar a questão, mas os familiares e pacientes falaram que desejavam que o tema fosse tratado. A figura do médico, do ponto de vista simbólico, é como a de um sacerdote. Para os pacientes e familiares é muito importante que ele dedique um tempo para conversar sobre isso e, se for o caso, trazer alguém da psicologia, ou mesmo da teologia, para participar dessa conversa", explica o professor.

Segundo Siqueira, os profissionais da área da saúde, especialmente médicos, sentem muita dificuldade ainda em abordar esse aspecto, e muitos não querem entrar nesse tópico, porque não tiveram essa orientação durante os anos de graduação. Mas, quando a conversa é feita, a repercussão tende a ser positiva, de acordo com Esporcatte.

"O paciente se sente acolhido na posição central, e isso muda completamente a relação dele com a equipe de saúde. O que as publicações mostram é que o profissional da saúde, quando faz esse atendimento, também sai com a espiritualidade fortalecida, e se protege mais. Isso é algo importante nos dias de hoje, com tanto estresse profissional, o burnout."

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