Aumento do peso corporal, maior dependência de telas e a perda da rotina foram alguns dos danos para as crianças| Foto: Bigstock
Ouça este conteúdo

Das muitas mudanças que a pandemia da Covid-19 trouxe em 2020, uma das que deveria causar mais preocupação teria de ser esta: as crianças estão se mexendo menos.

Confinadas a apartamentos algumas vezes apertados e sem ter onde e com quem gastar a energia acumulada, os filhos acabam se grudando às telas, aumentando o peso corporal e se esquecendo de habilidades motoras que, até o ano passado, estavam desenvolvendo.

CARREGANDO :)
Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]

Estudo publicado na revista científica BMC Public Health, em setembro, analisou as respostas de 211 pais norte-americanos sobre as atividades físicas e o comportamento sedentário dos filhos antes e durante a pandemia. Cerca de 36% dos pais reconheceram que os filhos fizeram "muito menos" atividade física nos sete dias anteriores em comparação à fevereiro deste ano, no início da pandemia. Quase metade, 41%, disse que os filhos tinham ficado "muito mais" tempo sentados nos últimos sete dias, em comparação ao mesmo período.

Publicidade

O mesmo foi visto na Itália, em um estudo com 41 crianças com obesidade ou sobrepeso que já recebiam acompanhamento antes do novo coronavírus. Em comparação com os dados do ano anterior à pandemia, as crianças passaram a comer uma refeição a mais e a dormir uma hora a mais todo dia. Elas também ficaram cinco horas a mais por dia em frente às telas, e comeram mais junk food e carne vermelha. Das atividades físicas: redução de duas horas, por semana, nas práticas de exercícios. O estudo foi publicado em abril na revista científica Obesity.

Na China, uma pesquisa publicada em abril na revista científica Progress in Cardiovascular Diseases, avaliou as atividades físicas de 2.426 crianças. De 540 minutos (9 horas) por semana em exercícios, as crianças passaram a fazer apenas 105 minutos, ou uma hora e 45 minutos. A inatividade física, do momento pré-pandemia para a pandemia, passou de 21,3% para 65,6%.

Prejuízos motores, mas não só

Desde o mês de agosto, quando o educador físico e professor de skate Anderson Brignol passou a ter o triplo da demanda para as aulas de skate, ele percebeu o impacto da pandemia no desenvolvimento dos alunos.

"Vi muito aumento de peso. Alunos que estavam comigo antes da pandemia e que ficaram sete meses parados, quando voltavam, tinham perdido o ritmo. Dá para ver nitidamente uma diferença na parte motora, que vai se refletir no comportamento da criança, na autoconfiança, segurança e na autonomia", explica o especialista em psicomotricidade relacional.

Por ficar muito tempo sem praticar a atividade, ao retornar, muitas crianças podem não ter a mesma confiança. "É uma insegurança momentânea que está ali na memória motora. Mas, para resgatar, leva um tempo. Dependendo da criança, esse tempo é mais rápido ou não. Algumas manobras que eu fazia com os alunos, que eram algo do dia a dia, depois de sete meses sem fazer demoraram um mês para resgatar", exemplifica.

Os pais podem não perceber, mas quando os filhos estão correndo no meio de outras crianças, eles também estão desenvolvendo a noção de espaço e tempo. Brignol explica que esse tipo de atividade é bem comum nos recreios das escolas ou nas aulas de educação física, e os benefícios vão se refletir na vida adulta.

"Quando a criança consegue correr com outras crianças, sem colidir com nenhuma, ela trabalha a questão de espaço e de tempo. Agora, na pandemia, por não ter outras crianças junto em movimento, ela não treina isso tanto. Embora ela consiga desviar da parede, do sofá, da televisão, esses são objetos parados e não dinâmicos como as pessoas. É uma habilidade que o adulto precisa muito quando vai aprender a dirigir", detalha.

Em crianças pequenas, essas colisões são mais comuns, mas isso tende a passar com o tempo. "Quando vê uma criança maior que colide muito, em geral ela passou da faixa etária em que isso deveria ser melhor trabalhado", explica o especialista.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]

Riscos para a saúde

Telas de celulares, computadores e televisores, sofás, camas e alimentos fast food têm sido as principais escolhas para aquietar as crianças ao longo dos últimos nove meses de pandemia. Os prejuízos, porém, se refletem a curto e a longo prazo.

De acordo com a médica pediatra Marcilene Teixeira Lima Oku, do departamento de Aleitamento Materno e Puericultura da Sociedade Paranaense de Pediatria, a habilidade da criança de criar relações com outras da mesma faixa etária foi o primeiro dos prejuízos a serem vistos.

"A criança se desenvolve a partir da percepção do outro. Ela necessita dos modelos, dos pares da mesma idade para modular as emoções, aprender a respeitar, a ganhar e a perder. Ela precisa aprender a respeitar a autoridade de um professor, entender a hierarquia. E isso tudo foi tirado dela", detalha a médica.

O sedentarismo e a obesidade geram perdas que vão além da saúde física, e isso tem sido visto nos consultórios dos pediatras. "Eu tive pacientes que ganharam sete a oito quilos no período de oito meses. O esperado é que a criança ganhe dois quilos no ano. Os pais não percebiam que estava fora do controle, mas a criança percebia e não queria ir à consulta porque tinha vergonha das estrias. A autoestima fica prejudicada", relata.

A médica cita ainda o impacto da dependência das telas - sejam computadores, sejam celulares. "Mesmo quando o pai autorizava a criança a ir para o parque, eles não queriam ir, para poderem ficar jogando. Os jogos criam essa dependência, porque liberam neurotransmissores de prazer. Sabemos de crianças que tiveram sintomas de abstinência, com insônia e irritação, quando os pais tentavam tirar o jogo."

Obesidade, diabete tipo 2 e problemas no coração

Problemas como obesidade, diabete tipo 2 e doenças cardiovasculares não são tão novos - até mesmo entre crianças. O período de pandemia, com o aumento dos hábitos inadequados, pode prejudicar ainda mais esses números, segundo Marcus Vinícius Bolívar Malachias, médico cardiologista e representante no Brasil do American College of Cardiology (ACC).

"A elevação da pressão arterial em crianças, que normalmente é um evento raro, agora tem tido um aumento, associado ao sobrepeso. Alterações no colesterol, nos triglicérides, no diabetes tipo 2. Em resumo: aumento da síndrome metabólica, que é um conjunto de fatores que são mais comuns em adultos, mas que estão aparecendo nas crianças", explica.

Malachias lembra ainda que, com o sedentarismo, crianças também estão apresentando perda de massa muscular. "Isso é terrível, porque a criança está em desenvolvimento. É a época em que temos maior desenvolvimento da musculatura, e isso pode trazer uma série de implicações ortopédicas para ela no futuro", destaca.

Publicidade

60 minutos por dia

Recentemente, no fim de novembro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) atualizou as recomendações de exercícios físicos para a população mundial. Entre adultos, de 2,5 a 5 horas de atividades moderadas a intensas, por semana. Para as crianças e adolescentes, a regra muda: uma hora por dia.

A diferença, porém, faz sentido, segundo Anderson Brignol, educador físico. "O acúmulo de energia nas crianças é maior do que em relação ao adulto. A criança passa o dia inteiro brincando, ou deveria. Elas têm uma resposta metabólica diferente, e precisa estar em movimento", explica.

Das atividades, o especialista é categórico: qualquer uma, desde que esteja se mexendo. "Até os games que proporcionam música e dança já ajudam bastante. Vídeos do TikTok são curtos, e a criança acaba passando mais tempo vendo os outros se movimentarem, do que ela mesma se mexer. Mas se envolver movimento, também vale", sugere.

Na dúvida, Brignol sugere aos pais uma dica infalível: "uma das melhores formas de estimular os filhos a se movimentarem é você se movimentando junto. O exemplo arrasta. Os alunos cujos pais fazem alguma atividade são muito mais motivados, desenvolvem mais rápido. É totalmente diferente", explica.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]

Fique atento

Alguns sinais devem servir de alerta aos pais para crianças que estejam com prejuízos do sedentarismo e de outros hábitos nocivos durante a pandemia. Confira a lista de sugestões dos especialistas ouvidos pelo Sempre Família:

  • Criança desatenta. Se o seu filho estiver muito desatento, está faltando atividades de equilíbrio para ele. Isso porque, ao se concentrar para se equilibrar, a criança exercita a atenção e foco.
  • Agitação e ansiedade. Crianças muito agitadas estão precisando se movimentar mais.
  • Sem sono. Quando a criança se exercita, ela cansa e o sono tende a ser mais profundo e reparador. Episódios de insônia podem ser um sinal da falta de movimento.
  • Ganho de peso. Pais devem ficar atentos para o ganho de peso exagerado ao longo desse ano.
  • Recusa em fazer exercícios. Seja por uma perda no condicionamento físico, seja por preferir passar o tempo na frente das telas, crianças que se recusam a correr, andar de bicicleta e jogar bola merecem mais atenção dos pais.
  • Muitas horas em frente às telas. Somando o tempo que a criança passa em aulas online e o tempo livre dedicado a jogos e redes sociais, o tempo de tela pode ultrapassar oito horas. Como consequência, ela pode ter perda visual, relacional, problemas ortopédicos, reumatológicos e posturais. Pais devem ficar atentos a esse tempo exagerado, além do que está sendo acessado pelos filhos.
  • Sinais de depressão. Criança muito quieta ou nervosa, que desenvolveu pânico com tudo associado a pandemia, que chora e tem medo, acorda à noite com insônia - esses são sinais emocionais que os pais precisam prestar atenção.
Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
Publicidade