Nicole Craine/The New York Times
Nicole Craine/The New York Times| Foto:

No laboratório do porão do Museu e Biblioteca Morgan, em Nova York, uma máquina de raios X lança jatos invisíveis em uma massa de folhas de pergaminho que parece tão delicada quanto uma flor morta há muito tempo.

As folhas são os restos de um livro antigo, ou códex, severamente queimado, que foi escrito no sul do Egito entre 400 e 600 d.C. Ele contém o Atos dos Apóstolos, um dos livros do Novo Testamento, possivelmente unido a outra obra. O texto está escrito em copta, a língua do Egito antes da conquista árabe no ano 642.

O manuscrito queimado foi comprado pela Biblioteca Morgan em 1962, mas ninguém o abriu com medo de destruí-lo. As páginas frágeis foram fundidas pelas cinzas que mergulharam na maior parte do livro, endurecendo as fibras do pergaminho. Ao contrário de outros códices conhecidos por nomes próprios, como o Códex Sinaiticus, este é conhecido humildemente como M.910, o número com que foi catalogado na biblioteca.

Só que após permanecer na obscuridade por meio século, o dia de luz do M.910 finalmente chegou. Em dezembro, uma equipe de jornalismo televisivo documentou todos os movimentos do pequeno manuscrito e seus dois novos entusiastas: Paul C. Dilley, especialista em cristianismo primitivo da Universidade do Iowa, e W. Brent Seales, cientista da computação da Universidade do Kentucky.

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Seales passou 14 anos desenvolvendo uma técnica para ler antigos pergaminhos frágeis demais para ser desenrolados. Máquinas de tomografia computadorizada conseguem visualizar a tinta das letras, mas a sopa de letrinhas só pode ser lida se cada letra for colocada na posição correta em uma superfície.

Então, ele criou um programa capaz de modelar a superfície de um pedaço retorcido de papiro ou pergaminho a partir dos dados dos raios X, obtendo dessa forma um texto legível ao colocar as letras no lugar correto.

Ele foi bem sucedido em 2016, quando desenrolou virtualmente um pequeno pedaço de material queimado de En-Gedi, em Israel. Era um antigo pergaminho hebraico que continha a amostra mais antiga do texto massorético, a versão consagrada da Bíblia Hebraica. Segundo Seales, sua técnica “pode transformar coisas consideradas sem valor em objetos preciosos”.

Foi após ouvir uma palestra de Seales, em janeiro, que Dilley o convidou a tentar a técnica no M.910. Na ocasião, Seales ainda não havia trabalhado com um códex que, ao contrário de um pergaminho, tem texto nos dois lados. Testes com um modelo simulado de pergaminho construído a pedido de Dilley sugeriram que a técnica poderia funcionar.

Porém, Maria L. Fredericks, diretora de conservação de livros da Biblioteca Morgan, determinou que o pequeno códex não poderia ser transportado. Ela mostrou uma página solta e um prato de pequenos fragmentos que caíram das bordas queimadas desde sua aquisição. Assim, Seales pegou emprestado um tomógrafo pequeno que foi levado à biblioteca.

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Dilley, pesquisador de copta, espera descobrir qual a obra que está agrupada com o Atos dos Apóstolos no códex, o que pode ajudar a esclarecer a formação do cânone do Novo Testamento. Havia uma profusão de evangelhos e outros escritos no início da era cristã, e foi somente em 367 que o cânone aprovado, a conhecida lista de livros do Antigo e do Novo Testamento, foi especificado por Atanásio, bispo da Alexandria.

O Egito era um grande centro do cristianismo no mundo pré-islâmico, e os bispos de Alexandria possuíam grande influência, atrás apenas do bispo de Roma, em questões de doutrina e prática da Igreja.

Mesmo assim, levou muitos anos para que o cânone familiar do Novo Testamento superasse os escritos gnósticos maniqueístas rivais. Por causa do custo da produção de livros, versões completas do Novo Testamento, tais como as do Códex Sinaiticus, eram raras, e os manuscritos coptas cristãos muitas vezes trazem apenas seleções, tais como os quatro evangelhos ou as epístolas de Paulo.

Embora existam versões anteriores de Atos, o M.910 terá interesse se contiver variantes. Essas, em conjunto com diferenças de outros textos, poderiam ajudar os estudiosos a reconstruir o texto da fonte grega original. Segundo Dilley, se o projeto for bem-sucedido, existem códices danificados no mundo inteiro que um dia poderão revelar seus segredos.

 

The New York Times

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