O que é corrupção?
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A palavra “corrupto” deriva do particípio do verbo latino “corrumpo”, que significa “apodrecer”, “destruir”, “perverter”. O sinônimo grego desta palavra, φθορά (fthorá), aparece nos escritos de Aristóteles em sentido oposto ao da “geração”, isto é, indicando alterações de ordem mais gerais no universo. Para este filósofo, assim como na geração, no seu sentido mais amplo, ocorre a passagem de algo que não era nada para algo que se tornou alguma coisa, a corrupção no sentido geral é o processo oposto, em que algo deixa de ser e passa à esfera do não-ser. Por sua vez, o processo de corrupção no sentido particular não remove a coisa da esfera do não-ser, mas a modifica de modo a se tornar o seu oposto. É o caso do objeto branco que torna-se, por diversos motivos, não-branco: trata-se de uma corrupção (Física, 225a).

A princípio, esta reflexão pode parecer distante demais daquilo que nós entendemos por “corrupção”, pois quando utilizamos este conceito nos referimos sempre a pessoas, nunca a coisas. Poucos ousariam utilizar a expressão “corrupção do mundo” para indicar o seu fim. Mas, quando chamamos alguém de “corrupto”, queremos dizer exatamente isto: que aquele alguém é um “destruído”. Destruído de quê? De sua natureza humana. Para os gregos, num universo de imensa harmonia, cada um tinha o seu papel, e os seres humanos também precisavam cumpri-lo. Para eles, a nossa diferença no mundo se devia à racionalidade e à sociabilidade, e isso deveria ser profundamente seguido. Um ser humano que se deixasse corromper pelas “paixões” e se afastasse da racionalidade ou da vida social (política) estava se corrompendo, pelo menos no sentido particular do termo, descrito por Aristóteles.

O corrupto é alguém que se destituiu da sua própria humanidade.

Mas não apenas os gregos tinham consciência de um possível afastamento do ser humano de sua natureza: é este o sentido mais profundo do que os cristãos chamam de “pecado original”. Se formos capazes de compreender que o relato bíblico de Adão e Eva diante da Serpente pode ser algo além de um conto de fadas, poderemos perceber que a estrutura simbólica nos indica uma corrupção da humanidade, a princípio perfeita, e agora ensimesmada, acusadora, orgulhosa. Os Padres da Igreja* insistiram muito nesta concepção; a corrupção no mundo surgiu do desejo anti-natural de ‘ser como deuses’, isto é, de igualar-se a Deus (o que é irracional), e a primeira atitude do casal original foi a de acusação, de romper o espírito de comunidade e sociabilidade (‘foi ela quem falou’ – disse Adão, acusando Eva; ‘foi ela quem mandou’ – disse Eva, acusando a Serpente). Diante deste cenário, muito representativo, nascerão todos os pecados, isto é, tudo aquilo que me corrompe e destrói a vida do próximo (por isso desagrada a Deus).

Igualmente importante é a compreensão do cristianismo de que a “corrupção original” atinge a todos nós e é, por isso mesmo, um problema antropológico. Isso equivale a dizer que a principal causa de sermos corruptíveis é a de sermos humanos. Juízo que, sem sombra de dúvidas, pode parecer tão superficial quanto dizer que ‘a causa de todos os divórcios é o casamento’, mas que tem consequências poderosas. Dizer que a corrupção é sempre uma possibilidade do coração humano é dizer que não há sistema político ou econômico perfeito. É afirmar que nenhuma ideologia, religião, partido ou qualquer outro agrupamento humano é capaz de abrigar em si pessoas incorruptíveis.

A solução do problema da corrupção, para o cristianismo, não perpassa apenas as condições sociais justamente porque existe uma necessidade de livre adesão de cada pessoa ao bem. Em nenhum momento se exclui a necessidade de boas instituições e regulações, de modo a evitar os danos da corrupção. Mas salienta-se que estas não são o suficiente. Uma instituição, por melhores regras que tenha, será sempre corrupta se os seus membros forem corruptos. No entanto, quando numa comunidade há uma busca incessante de cada membro pelo bem comum, a corrupção já foi expurgada antes mesmo da comunidade, através do ato deliberado de cada participante daquela comunidade.

Alguém poderá objetar que o próprio cristianismo (sobretudo os catolicismos) rompe com a ideia de corrupção ao cultuar pessoas que foram incorruptíveis, os santos. Ao contrário, eles corroboram com a ideia central. Os santos não foram incorruptíveis, mas foram os que mais se deram conta de sua corruptibilidade. Foram aqueles que, conhecendo-se a si mesmos, espantaram-se de como o mal estava intrinsicamente permeado em seus corações, e decidiram agir no sentido contrário, abrindo-se para a graça e amando o próximo.

 

Padres da Igreja* são chamados os santos que viveram nos primeiros séculos do cristianismo e que, com a profundidade e riqueza de seus ensinamentos, constituíram uma base sólida para o pensamento cristão.

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